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22. Dublinenses - Textos publicados na Folha

O crônico medo da anarquia

(publicado em 23/11/1997)

Principal testemunha do julgamento de "Lady Chatterley", em 60, fala à Folha

MARIA LÚCIA GARCIA PALLARES-BURKE
especial para a Folha

Enquanto em 1933 o juiz Woolsey, com seu brilhantismo, simpatia e competência, fora a estrela inconteste do julgamento do "Ulisses", em 1960 tal papel coube a uma testemunha, o professor Richard Hoggart. Apesar de outras também se destacarem pelo destemor e brilho com que respondiam ao interrogatório do promotor e do advogado de defesa, o desempenho de Hoggart foi considerado decisivo para o resultado final.

Testemunha que, segundo os registros, foi interrogada por mais tempo na história do Old Bailey, Hoggart, por sua verve, foi descrito como o "Lawrence reencarnado a defender sua obra".

Autor de um best seller acadêmico, "The Uses of Literacy" (1957) e, juntamente com Raymond Williams e Stuart Hall, fundador dos inovadores e influentes Cultural Studies (Estudos Culturais), Hoggart, aos 79 anos, é uma das poucas testemunhas ainda vivas do grande julgamento literário do século. Na entrevista que concedeu à Folha, ele revelou que seu vigor e concisão não se desvaneceram com o tempo.

Folha - As testemunhas da defesa diferiam quanto à ideologia, política e religião. O que as teria feito lutar pela mesma causa?
Richard Hoggart - Respeito por Lawrence, dignidade intelectual e apoio ao novo e mais liberal "Jenkin's Act", que, seguindo o exemplo do caso "Ulisses", determinava que um livro deveria ser julgado como um todo.

Folha - O sr. fez o mais ousado pronunciamento do julgamento, descrevendo o livro de Lawrence como "altamente virtuoso e até mesmo puritano". Essa foi uma frase estratégica ou espontânea?
Hoggart - Espontânea. O promotor público tinha lido "passagens sujas" para o tribunal, uma atrás da outra, e me desafiou a negar que elas eram obscenas. Assim, eu espontaneamente lhe respondi com um paradoxo.

Folha - O sr. ainda diria hoje que o livro é puritano?
Hoggart - Sim. Não no sentido desvirtuado usual, mas na tradição do puritanismo não-conformista britânico.

Folha - E sobre a exclamação que deixou o juiz e o promotor boquiabertos: "Simplesmente, a gente 'fuck!'±". Foi estratégica, com intenção de chocar, ou foi espontânea?
Hoggart - Foi uma tentativa de fazer a oposição (que incluía o juiz) enfrentar a linguagem honestamente. Eu realmente quis ser bem claro.

Folha - O sr. afirmou que o promotor estava julgando ''Lady Chatterley'' por desprezar sua classe, e Mellors, por querer ascender socialmente. Isso significa que a questão em pauta era a divisão de classes e que, se Mellors fosse aristocrata, provavelmente o livro não teria sido banido e julgado?
Hoggart - A diferença de classe era muito importante, mas o impulso principal para a acusação era o uso frequente de "fuck", que os chocava então, como ainda hoje. De qualquer modo, a simpatia que ''Lady Chatterley'' atraía tinha muito a ver com as implicações "antiestablishment" de sua relação com Mellors, um simples guarda-caça. Os ingleses, na sua maioria, gostam de cuspir nos olhos da autoridade.

Folha - O sr. declarou em julgamento que "uma leitura séria e decente do livro" era necessária para que fosse percebida toda a grandeza da mensagem, bem como o lugar do relacionamento sexual nele. Isso não significa dizer que o papel redentor do amor só seria entendido por poucos, e talvez pelos que menos tinham necessidade da lição de Lawrence?
Hoggart - Qualquer livro pode ser mal lido, especialmente os que têm "partes sujas". E isso é o que aconteceu após o julgamento. Muitos mineiros de Eastwood não leram como deviam, e leitores "cultos" também mostraram ter mentes estreitas e não abertas. Contudo assim é a vida.

Folha - Foi argumentado que, se o livro que a Penguin estava publicando não fosse tão barato, o problema com a censura seria quase nulo. O que acha disso?
Hoggart - O medo de anarquia é crônico na sociedade britânica. Realmente, a acusação parecia preocupada com a brochura barata caindo nas mãos das classes baixas e com a desagregação social que a liberação sexual poderia provocar. Há uma boa piada que caçoa dessa atitude. Quando casou com Albert, a rainha Vitória teve a primeira experiência sexual... e gostou. "Os pobres também fazem isso, Albert?", perguntou ela. "Sim, querida". "Santo Deus! Isso é bom demais para eles, Albert!"

Folha - "Inesperado", "surpreendente", "um grande milagre", foram expressões usadas para saudar o veredicto. Por que as pessoas ficaram tão surpresas?
Hoggart - O Jenkins' Act abria a possibilidade de um livro ser importante para o "bem público", apesar de obsceno. Todavia o promotor e o juiz tinham sido incansavelmente hostis, querendo fechar essa abertura e realmente matar a defesa. Supunha-se que o jurado iria ser abalado pelo establishment, mas não aconteceu.

Folha - Qual sua opinião sobre as novas objeções das feministas a "O Amante de Lady Chatterley"?
Hoggart - Elas estão erradas, profundamente equivocadas. Não conseguem ler um livro honestamente sem usar um óculos ideológico distorcido.

Barbara Barr, enteada e principal herdeira de Lawrence, saudou o veredicto com euforia: "Sinto como se uma janela tivesse se aberto e soprado ar fresco por toda a Inglaterra".

Crítico da ganância moderna e do intelectualismo estéril, Lawrence muito provavelmente não teria concordado com tal visão, dado os efeitos da vitória de 1960. De um lado, seu livro foi transformado numa verdadeira mina de ouro; e, de outro, teve início a "Indústria Lawrence" que, rivalizando com a "Indústria Joyce", transformou sua obra em matéria morta de teses universitárias e de revistas especializadas em D.H. Lawrence.

Se vivo hoje, Joyce talvez se surpreendesse com o debate atual em torno do ''correto texto'' de seu ''Ulisses'', suscitado pela polêmica edição de Hans Gabler e seu time de especialistas. Por sua vez, Lawrence talvez se lembrasse com nostalgia dos bons velhos tempos, quando os críticos não o analisavam a fim de determinar se era hetero, homo ou bissexual, ou simplesmente um execrável heterossexista.

Maria Lúcia G. Pallares-Burke é professora de história da educação na USP e autora de "The Spectator - o Teatro das Luzes: Diálogo e Imprensa no Século 18" (Hucitec) e "Nísia Floresta, o Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" (Hucitec).

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