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22. Dublinenses - Textos publicados na Folha

"Joyce" é boa foto do artista

(publicado em 15/09/1999)

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Para que serve a biografia de um escritor? No caso de James Joyce --aliás, como no de tantos outros grandes nomes da literatura-- parece servir antes de mais nada para mostrar aos leitores desavisados o inferno que pode ser a vida de um autor literário.

É difícil imaginar outra obra cuja potência jubilosa da vida ali representada seja tão inversamente proporcional às dificuldades (financeiras, de saúde etc.) sofridas pelo autor, a se julgar ao menos pela pequena biografia escrita por Edna O'Brien sobre Joyce. Ninguém faz, por exemplo, para tomar uma obra cuja potência criadora poderia ser equiparada à do escritor irlandês, uma imagem muito infeliz de Shakespeare.

O grande biógrafo de Joyce, Richard Ellmann (autor de "James Joyce", ed. Globo), define a vida do autor de "Ulisses" como uma incessante passagem de "uma crise a outra, de uma exacerbação a outra". Joyce comeu o pão que o diabo amassou e, ainda assim, escreveu uma das obras mais extraordinárias do século, sempre endividado e vendo os livros várias vezes recusados ou censurados antes de ser devidamente reconhecido.

Para culminar, acabou morrendo refugiado na Suíça, praticamente cego, separado da filha esquizofrênica que ele adorava e que ficou internada num hospício na França sem poder deixar o país recém-ocupado pelos alemães.

Para os resenhistas, as biografias literárias servem ainda --e não é desprezível essa sua utilidade-- para que possam rechear seus artigos com fatos da vida do escritor, que reproduzem pela simples paráfrase, sem que tenham de se dar ao trabalho de pesquisa ou reportagem. Isso deve explicar em parte a simpatia com que, em geral, as biografias são recebidas na mídia.

A de Edna O'Brien --que, como seu biografado e mais célebre conterrâneo, também teve alguns de seus livros censurados pelo moralismo católico da Irlanda-- tem um caráter claramente introdutório e despretensioso, e não apenas pela sua brevidade.

A autora não faz cerimônia em citar a biografia de Ellmann sempre que precisa, reconhecendo-lhe humildemente a preponderância como referência obrigatória, e também não mede parágrafos quando se trata de fazer as sinopses de "Ulisses" e "Finnegans Wake", dirigindo-se aos que não só nunca leram a obra mas podem, uma vez conhecendo o resumo do enredo, vencer as dificuldades iniciais de leitura.

O "James Joyce" de O'Brien é, portanto, uma biografia quase escolar, de índole educativa e didática, apesar de ter optado por omitir as datas como pontos de referência cronológica em vários momentos em que essa informação seria crucial ao longo do texto, provavelmente em nome de uma maior elegância estilística.

Eventualmente, O'Brien também incorre em certos artifícios típicos do estilo florido de biógrafos com pretensões literárias, que ela não precisaria ter, sendo autora de uma obra ficcional de reconhecida qualidade. Embora raras, há frases do tipo: "O jovem reconhecia que a família era um ninho do qual devia voar" ou "Uma fera murmurava palavras que ele ainda não entendia" ou "O fato de Joyce ter-se elevado acima de tantos mal-entendidos é sem dúvida um testamento àqueles olhos feridos e ao Espírito Santo naquele tinteiro".

A arte da biografia nada mais é do que tornar narrativa a vida dos outros --que de narrativa não tem nada--, dando-lhe uma lógica e uma coerência, o que pressupõe não só a escolha de um ponto de vista em detrimento de outros, mas a própria invenção de uma unidade que provavelmente nunca existiu.

A biografia é uma forma de sistematizar as informações disseminadas pela obra e pelos documentos em torno do autor, fazendo do biógrafo um bibliotecário muitas vezes com pretensões de estilo literário em suas fichas.

O'Brien consegue no geral evitar a maioria desses cacoetes. Sua biografia de Joyce é simpática em suas ambições simplesmente introdutórias, um retrato do artista como um triunfo da vontade, obstinado em criar uma das obras mais geniais de toda a história da literatura, a despeito de Deus e de todas as dificuldades físicas e materiais que lhe reservou o destino.

Avaliação: Bom
Livro: James Joyce
Autor: Edna O'Brien
Tradução: Marcos Santarrita

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