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22. Dublinenses - Textos publicados na Folha

A mitopoética de Joyce

(publicado em 14/11/1999)

Sai o primeiro volume da tradução integral de "Finnegans Wake", feita por Donaldo Schüler

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
Especial para a Folha

A decisão de Donaldo Schüler, enfrentando a tradução integral de "Finnegans Wake", só pode suscitar aplausos. Ao que se saiba, só existe uma similar em francês, feita por Philippe Lavergne, pouco ousada, e outra, resumida a um terço, por Victor Pozanco, em espanhol (1).

"Ulisses", de hermetismo bem menor, teve melhor sorte. A versão para o francês, supervisionada por Valérie Larbaud, fez-se em vida de Joyce e, a bem dizer, às suas vistas. Dentre tantas outras, assinou a nossa, já em décima edição, Antonio Houaiss. Apesar do volume e da complexidade, dos neologismos e dos jogos verbais, "Ulisses" ainda é ninharia perto do que viria depois.

Para "Finnegans Wake" temos o privilégio de contar com a transcriação pioneira de 16 fragmentos feita por Augusto e Haroldo de Campos, precursores em língua portuguesa (2). Em justa homenagem, o título que forjaram, "Finnicius Revém", será preservado.

Na vertente da prosa, Joyce escrevera "Dublinenses" (contos, 1914), "Retrato do Artista Quando Jovem" (romance, 1916) e "Ulisses" (romance, 1922), insistindo na obsessão pela cidade de Dublin --sua mesquinharia, seu provincianismo, sua pequenez-- e por seus habitantes.

"Dublinenses", conjunto de narrativas realistas, percorre o espectro da gente urbana e sua maneira de viver. "Retrato do Artista Quando Jovem" relata as torções existenciais de Stephen Dedalus, futuro escritor, às voltas com a vocação e com a formação religiosa no colégio dos jesuítas. Já "Ulisses", uma extraordinária realização e um volumoso romance, dá um salto qualitativo, embora repise a mesma matéria, Dublin e os dublinenses. É apenas parcialmente realista, operando um até então inédito uso do fluxo da consciência e do monólogo interior. A arquitetura advém do ilustre modelo épico grego e da unidade de espaço, tempo e ação, característica da tragédia ática.

O entrecho se encerra nos limites de um único dia do ano de 1904, o 16 de junho --hoje o Bloomsday, festejado em Dublin e pelo mundo afora. Embora o anti-herói pequeno-burguês e judeu seja Leopold Bloom, seu duplo se chama novamente Stephen Dedalus. Ulisses como que amalgama os dois livros anteriores, rompendo com os limites lexicalizados da linguagem.

"Finnegans Wake" constituirá outro salto. Abandonando o universo diurno e realista dos dois primeiros livros, bem como a inteligibilidade ainda precariamente mantida no terceiro, optará pelo universo noturno, onírico e mitológico. A linguagem entra em desagregação e é estilhaçada em seus elementos básicos, étimos, morfemas, fonemas etc. Para a partir deles ser reconstituída por uma energia luciferina em craveira babélica: cada vocábulo proliferando em rumos poliglotas (65 línguas, segundo consta), num entrelaçamento sem fim de reverberações sonoras e semânticas.

Admitindo que no conjunto tudo é polissêmico e de posições reversíveis, vislumbra-se um vasto épico apócrifo da Irlanda, remetendo às legendas pagãs, anteriores à incorporação ao Império Romano e à cristandade. Os heróis das sagas de fundação nacional se fazem presentes, desde são Patrício, o catequizador dos bárbaros locais, passando por Tristão e vindo até Parnell, figura e ícone das lutas oitocentistas pela independência. Personagens legendárias são inventadas, porém em obediência a amplas linhas míticas.

Entre eles se delineiam titãs ou gigantes dos tempos arcaicos, como Finnegan e Finn, que depois cedem lugar ao par primordial HCE e sua mulher ALP ou Anna Livia Plurabelle. HCE tem múltiplos nomes. Ora é Haveth Childers Everywhere, como o nome indica "herói itinerante e povoador", ora é Here Comes Everibody em seu aspecto de homem universal, ora Humphrey Chimpden Earwicker, o estalajadeiro dublinense contemporâneo. Uma das traduções propostas por Donaldo Schüler para seus diversos nomes é "O Homem a Caminho Está". E Anna Livia encarna igualmente o princípio feminino e as águas heraclitianas do rio Liffey, com a capital irlandesa pousada em suas margens. Ambos se identificam com Adão e Eva, sendo pais de uma filha e de dois irmãos inimigos, como Caim e Abel: Shem (the Penman) e Shaum (the Postman). No fim, para além de todos os conflitos, pai e mãe reaparecem na velhice e simbolizam o recomeço do ciclo vital. O livro inteiro pode ser entendido como um sonho de HCE ou então como um HCE sonhado pela humanidade em sua atividade mitopoética.

Para travejar a narrativa, Joyce, como ninguém ignora, se valeu das teorias de Vico sobre as eras da humanidade, que vai do esplendor à decadência para ressuscitar e recomeçar de zero, contidas no princípio de "corso" e "ricorso". Esse eterno retorno é dado pela intercadência da onomatopéia da Queda ecoando em trovão, expressa num polissílabo de cem letras incidindo a intervalos. Vai aqui sua ocorrência inicial, logo na primeira página: "(bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronnton nerronntuonnthunntrovarrhounawn-skawntoohoohoordenenthurnuk!)" --a contagem de cem grafemas incluindo o ponto de exclamação, mas não os dois sinais de parêntese.

Em vez de um dia determinado, como em "Ulisses", alastra-se a atemporalidade do mito. O espaço é o de sempre, mas no âmbito de uma Dublin na qual a escavação em espiral, conferida pelo mito, atropela e revolve as camadas dos episódios.

A atribulada redação de quase duas décadas iniciou-se, oásis numa vida de êxodo, em Paris em 1922, com ponto final decretado pela Segunda Guerra. Decisivos foram o contato e convivência de Joyce com a vanguarda francesa, na época a mais influente do mundo. E começou, segundo Richard Ellmann, autorizado biógrafo e amigo pessoal (3), não pelo começo, mas por partes que se incrustariam na metade e no final do livro. Como se vê, coerente com a concepção global e circular, Joyce investiu a massa enciclopédica não do começo para o fim, mas com certa simultaneidade. Desafiava assim os dois fundamentos da épica, a lei da causalidade --a causa precede o efeito-- e a lei da temporalidade, ou seja, respeito pela ordem cronológica dos acontecimentos.

Enquanto a redação prosseguia, já no ano seguinte a revista parisiense "Transition" passaria a estampar trechos de um "work in progress", o título definitivo mantido em segredo. Tais trechos, tendo amigos e confrades, entre eles Samuel Beckett, por escoliastas, seriam em 1929 reunidos numa publicação joycianamente chamada "Our Exagmination Round His Factification For Incamination of Work in Progress", adquirindo a importância ímpar de constituírem chaves deixadas pelo próprio autor. A ponto de Edmund Wilson declarar que sem elas o livro permaneceria indecifrável. Terminado em 1932, só viria à luz em 1939, pela Faber & Faber inglesa, garantes da primeira edição completa e canônica. Essa mesma é a que Donaldo Schüler utiliza, com base num exemplar adquirido pela universidade e posto à sua disposição.

As 628 páginas dividem-se em quatro grandes partes, numeradas de 1 a 4, mas sem títulos. É no último trecho da parte 2 que se situa o episódio de Anna Livia Plurabelle, ou dos rios, com mulheres lavando roupa no Liffey enquanto tagarelam. Tornou-se predileto dos tradutores de fragmentos devido à sua relativa unidade e à peculiaridade de introduzir centenas de nomes de rios dentro das palavras que o compõem, como abaixo (4):

"My wrists are wrusty rubbing the mouldaw stains. And the dneepers of wet and the gangres of sin in it!",

que Donaldo Schüler traduz assim:

"Meus pulsos pulsam pulsam e moldam e limpam manchas. Com niéperes e gangerenas de pestemas in illo!".

No trecho, a palavra "mouldy" (mofado) é aproveitada para introduzir o rio Moldau ou Moldava, que atravessa a cidade de Praga, somando-se ao Dnieper e ao Ganges.

Ou, outro exemplo, do mesmo trecho, agora servindo ao propósito de, seguindo a inventiva de Joyce, trazer novas referências fluviais para compensar outras que recalcitram a se deixar verter:

"...Acala em minho. E bota e bate já lá vão dias sete de danúbio a tejo... Noticiários moselaram o que fez...".

Ou então, sempre no espírito de Joyce, o enxerto de alusões brasileiras que tampouco figuram no original:

"Açaí, claro, todos conhecemos Anna Lívia!... Nada de abaeter em mim --ai!-- quanto te abayas. O que é que Tefé que tresandaram a descobrir...".

O que é compatível com a transposição de "bend of bay" para "beirando a Bahia", em vez de meramente "beirando a baía", logo na primeira linha do livro.

Devemos a empreitada à iniciativa da Casa de Cultura Guimarães Rosa, em Porto Alegre, que resolveu bancar o projeto "Daimon: Finnegans Wake... Um Porto Transcriativo", bem como ao grupo de psicanalistas gaúchos que há anos estudam Joyce com o tradutor, agregados pelo entusiasmo de Alduísio Moreira de Souza, diretor da casa. O lançamento do primeiro fascículo neste novembro contaria, mas infelizmente não pode se concretizar, com a presença de Stephen Joyce, único neto e herdeiro de Joyce, filho que é de George Joyce, nascido em Trieste e familiarmente chamado de Giorgio. Preito de um filho dedicado, já que Stephen é o nome do alter ego de Joyce, tanto no "Retrato do Artista Quando Jovem" quanto no "Ulisses".

Donaldo Schüler propõe-se o prazo de quatro anos, dividindo o livro em 17 fascículos bilíngues, cada um com estudo introdutório. A edição, comandada por Plínio Martins Filho, da Ateliê, fornecerá quatro capítulos por ano, a partir do final de 1999. Uma vantagem (a única, talvez), segundo o tradutor, é ser Joyce um dos mais estudados autores de língua inglesa, tornando o respaldo bibliográfico ponderável. Há até, o que parece piada, traduções para o inglês --sim, para o inglês mesmo--, com objetivos escolares.

Mesmo assim, o tradutor está cônscio de executar um trabalho experimental, visando a abrir a discussão, e sem pretensão canônica. E se mostra disposto a refazê-lo no que necessário for para atender às sugestões que surgirem. Sempre no espírito de Joyce, de um "work in progress".

Notas

1. Donaldo Schüler, entrevista ("D.O. Leitura", ano 17, nº 4, agosto de 1999) e ensaio "O Homem a Caminho Está" ("D.O. Leitura", ano 17, nº 5, setembro de 1999).

2. Augusto e Haroldo de Campos, "Panaroma de Finnegans Wake", São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1962, 1ª ed.; São Paulo, Perspectiva, 1986, 2ª ed., revista e ampliada.

3. Richard Ellmann, "James Joyce", trad. Lya Luft, Rio, Globo, 1990; 1ª ed. ingl. 1959, 2ª ed. ingl. 1982.

4. James Joyce, "Finnegans Wake", Londres, Penguin Books, 1992, pág. 196.

Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e crítica literária, autora, entre outros, de "Desconversa" (Ed. da UFRJ).

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