Folha Online
Biblioteca Folha
22. Dublinenses - Textos publicados na Folha

Joyce e Proust

(publicado em 30/07/2000)

por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO

O diálogo que não houve
Ensaísta discute a correspondência de dois dos mais importantes escritores do século


Nada de semelhante às grandes linhas da correspondência de Joyce existe na de Proust. Este, até quando se dirige àqueles que se supõem terem sido seus amores, ou objetos de seu desejo para consumação futura, é de uma discrição tal e de tão tortuosas explicações que só vem a espicaçar, sem satisfazê-la, a curiosidade do leitor. Já o Joyce missivista invade o reino da escatologia. Enquanto Proust jamais fala do conteúdo de seu trabalho aos amigos e familiares a quem escreve, afora os verdadeiros pareceres que endereça a seus editores, Joyce é muito expansivo a esse respeito. Dada a fortuna de sua correspondência que, a posteriori, acabou obedecendo a uma clivagem, pode-se dividi-la apenas em duas vertentes: para Nora ou para os demais destinatários.

Dentre esses, sobressaem pela constância e seriedade Harriet Shaw Weaver, seu mecenas, editora a partir de 1914 de "The Egoist", revista londrina que o apadrinhou graças ao apoio do diretor literário, Ezra Pound. Essa senhora, embora desde 1917 contribuísse para o sustento de Joyce e sua família em Zurique, corroborando o escritor, o qual confiava em que o mundo lhe era devedor, como fica claro no epistolário com a importância de 500 francos suíços mensais, só viria a conhecê-lo pessoalmente em 1922.

Mais tarde, tendo recebido uma herança em 1924, doa-a a Joyce para que pudesse viver das rendas e continuar escrevendo sem ser coagido a trabalhar.

É assim que, nessa longa troca epistolar, a destinatária se torna alvo de verdadeiros "relatórios de produção", com Joyce lhe prestando contas frequentes e escrupulosas sobre a redação do "Work in Progress". A partir de certo ponto, Joyce começa a fazer piadas com Harriet na nova dicção "Finnegans Wake": "... may Allah who is infallahble..." (9/11/1927). A impregnação se amplia, quando escreve a Sylvia Beach (22/5/1928), editora de "Ulysses", comentando Lewis Carroll. Afirmando que o Jabberwock do poema é um sósia do Gato de Cheshire, que era só sorriso, argumenta com versos como "Longtime the Manxmost foe he sought". Silenciando que o Manxcat constitui uma raça destituída de rabo, diz ele que "the leastmanx cat is short of a tail so I suppose a manxmost cat has neither head nor tail". Tais cartas, a exemplo das de Guimarães Rosa a seus tradutores, são inestimáveis por desvendarem mecanismos da criação. Mesmo quando, como nas duas citadas, nada tenham a ver diretamente com a obra. Mas outras têm.

Embora mantivesse seu suporte econômico, Harriet não recebe bem a nova maneira de Joyce no "Work in Progress", como demonstram as cartas do escritor com longas justificativas (1.2.27).

As amostras, com explicação e glossário (15/11/26, 23/10/28 etc.), certamente inquietaram a boa amiga. E ela não seria a única. Ezra Pound desaprova igualmente (1º/2/27). Mesmo o leal irmão Stanislaus pensa que Joyce enveredou por mau caminho ao abrir mão de comunicar-se com o leitor, incensado pela bajulação de seu cenáculo parisiense . As defecções se sucedem e se acumulam, mas o mecenas continua firme em seu apoio, que nunca retirou.

Os mal-entendidos são variados. Joyce, dono de um belo tenor, preferia a música vocal, canto e ópera, à instrumental. Exercera o desempenho profissional na juventude em Dublin, em igrejas, concertos e festas, sobretudo de música tradicional irlandesa. Parece que Nora não era muito fã do talento do escritor, mas sim de sua voz. Tanto o pai de Joyce, adorado pelo filho, quanto Nora acreditavam que ele deveria ter feito carreira como cantor, em vez de perder tempo a escrever bobagens que ninguém entendia.

Quanto a Stanislaus, apesar do título que escolheu para seu livro --"My Brother's Keeper" (O Protetor de Meu Irmão), em alusão irônica a Caim--, nunca houve mais dedicado guardião fraternal. Essas memórias de infância e juventude, interrompidas pela morte do autor, mostram a vida com a família e com a turma de rapazes meio literários, meio boêmios na capital irlandesa. Eram inseparáveis, sendo Stanislau dois anos mais moço e tendo seguido o irmão no exílio por insistência dele; e exilado morreria.

Joyce era extravagante e imprevidente, além de intemperante, e quem ia resgatá-lo e pagar suas contas era o irmão. Stanislau morreu a 16 de junho de 1955, Bloomsday, dia em que costumava dar uma festa em homenagem ao irmão, de quem era fiel admirador. Não deve ter ficado muito contente ao se ver retratado em Shaun (seu primeiro nome era John), contrapartida pior e mais prosaica de Shem (James), em "Finnegans Wake".

Outras missivas endereçadas a Harriet Shaw Weaver constituem verdadeiros "pregões de leiloeiro", trazendo oferecimentos, com descrições pormenorizadas, de originais, manuscritos, primeiras edições e fotografias autografadas, que o escritor de hábito entesourava primeiro e vendia depois a particulares e em leilões, mostrando um senso bem desenvolvido do valor mercantil a auferir de prototextos e paratextos.

Chegamos aqui à parte mais picante, e mais espinhosa de lidar, da correspondência de Joyce, as cartas à mulher. Fenômeno ímpar na história da literatura, são cartas de sexo explícito, de um nível de carnalidade só comparável à obra de Sade e aos poemas de Catulo. Ou talvez, mais perto do leitor, à musa pornográfica luso-brasileira de, entre outros, Gregório de Matos e Bocage. Esbanjam candura de molde a empalidecer as de dom Pedro 1º à marquesa de Santos. E as citações vêm a ser praticamente impossíveis.

O conjunto, tardiamente publicado na íntegra, lançou nova e quase insuportável luz sobre a vida do casal, iluminando frinchas de que ninguém suspeitava: basta ler as biografias. Como praticamente nunca se separaram, há blocos epistolares distantes no tempo, nas poucas vezes em que não estiveram juntos. Um primeiro lote cobre o ano de 1904, quando começaram a namorar. A fisicalidade da paixão aí já fica clara: Joyce roga-lhe que desista do espartilho (12/7/1904, 1º/9/1904 etc.); manda-lhe beijos de 25 minutos no pescoço (12/7/1904) e pede-lhe os dela (1º/9/1904); flutua em entorpecimento amoroso (15/8/1904). Menciona "aquela noite" como encerrando uma espécie de "sacramento" (29/8/1904), o que se elucida mais tarde em outro lote de uma franqueza atroz.

Uma das cartas, extensa (29/8/1904), explica que rejeita a ordem social e a religião, lar e virtudes burguesas, enquanto se penitencia por tê-la magoado, fazendo o leitor inferir que discutiram matrimônio. Contra o qual ele era --tanto que só viriam a casar em 1931, depois de 27 anos de vida em comum e dois filhos--, mas que ela, simples e devota (1º/9/1904), pressupõe-se que fosse a favor. Acabam por fugir juntos e definitivamente a 18 de outubro de 1904, quando a correspondência se interrompe. Vão se fixar em Trieste, via Zurique e Pola (Croácia), onde permanecerão por muitos anos enquanto Joyce ensina inglês na escola Berlitz.

O segundo lote vai de 1909 a 1912 e é provocado por uma primeira, e rara, separação. Em 1909 Joyce volta à Irlanda, com o filho, por alguns meses. E é nesse interregno que todas as fúrias do inferno se desencadeiam. Segundo o epistolário, uma alma caridosa diz-lhe que também namorara Nora, em noites alternadas com as de Joyce, nos mesmos meses de 1904 e percorrendo os mesmos itinerários . Após uma noite de insônia, seguem os cálculos mais insultuosos: "George é meu filho? A primeira noite em que dormi contigo em Zurique foi a de 11 de outubro e ele nasceu em 27 de julho. São nove meses e 16 dias. Lembro-me de que houve pouco sangue naquela noite" (7/8/1909). Seu sofrimento é inegável e repisa a falha de confiança, da parte daquela que "me apertou nos braços e fez de mim um homem" (id.).

Duas semanas depois ainda não chegara resposta da injuriada Nora. Entrementes um velho amigo defendera-a e desfizera a intriga. Joyce escreve pedindo perdão e passa a revelar a intensidade e a qualidade dos laços que o uniam àquela mulher nada sofisticada ("minha Nora de coração simples" --21/8/1909), que era camareira de hotel. Muito dos arcanos desse laço indestrutível transparecem na correspondência.

Conforme Stanislaus, o artista quando jovem não era nenhum santo, muito pelo contrário, já se mostrava propenso à esbórnia, o que seria pela vida afora. Mas pode-se dizer que Nora foi uma revelação carnal, devido à naturalidade do ardor com que mergulhava nesse lado da vida. Tinham respectivamente 22 e 19 anos quando começaram a namorar, e há consenso na atribuição do Bloomsday, 16 de junho, a uma celebração da data em que firmaram compromisso, em 1904.

Reaquecimento da libido

Após cruéis cenas de ciúmes e acusações, dá-se um reaquecimento da libido. Vamos encontrar três tipos de cenas libidinais epistolares: rememorações, premonições e fantasias alternativas. Fica clara a divergência entre, de um lado, aquilo que é rememoração de episódios eróticos que já se passaram entre ambos e, de outro lado, aquilo que Joyce promete lhe fazer ou lhe solicitar no futuro. Nora acaba entrando no jogo e passando a escrever-lhe --o que só sabemos em espelho, através dos comentários dele em suas próprias cartas-- a respeito de suas rememorações pessoais e promessas para o reencontro, que servem a Joyce para devaneios onanistas, de que fala jocosamente sem rodeios em suas cartas.

O leitor não sabe o que mais admirar: se a suspensão de todo decoro, se a incontinência verbal sobre tão variada gama de práticas, que vão desde o voyeurismo, a masturbação, o coito anal e oral, a mania por roupas íntimas, lubricamente descritas, a pedofilia latente nas recomendações do uso de certos trajes e certas posturas, até coprolalia e coprovoyeurismo. Tudo a definir o perverso polimorfo freudiano, de patamar infantil. Também comparece a flagelação, ao que parece apenas imaginária. Mas aqui os pormenores afloram o arquetípico, com a rechonchuda ama-de-leite pondo a criança de bruços no colo e fustigando seu traseiro, semelhante à anamnese de Rousseau nas "Confissões", caso que se transformou em fixação sexual. Estas cartas são, em qualquer caso, de arrepiar os cabelos.

Depois desses arroubos epistolares e, ao que se infere, ante protestos de Nora --que às vezes entrava no jogo (20/12/1909), às vezes amuava (15/12/1909) --, Joyce podia pedir perdão e jurar que a amava da maneira mais completa (21/8/1909).

Após o tão suculento lote de 1909, o que resta é propriamente um anticlímax. Em outra ocasião, indo o casal à Irlanda em 1912, ele fica na capital, enquanto ela vai visitar a família em Galway. Esse é o motivo para a retomada de uma rápida troca epistolar, antes de retornarem a Trieste após curto intervalo. Joyce morreria em 1941 e Nora em 1951, ambos em Zurique.

Encontro em Paris

Nem em seus sonhos de megalomania poderia o leitor inventar o que se passou na realidade: os caminhos dos dois romancistas mais importantes do século acabaram por se cruzar, em 18 de maio de 1922, no período em que Joyce morou em Paris. Os biógrafos mais autorizados de ambos falam do encontro de maneira diversa, embora coincidente. Sentaram-se lado a lado, Proust em peliça e olheiras, Joyce quase cego e já nos copos, numa recepção que um amigo comum, o escritor inglês Sydney Schiff, oferecia aos Balés Russos no hotel Majestic. Afora eles, estavam presentes os integrantes do balé, como ("excusez du peu") Stravinsky, Picasso, Diaghilev e outras pessoas gradas.

Naturalmente, ocasião tão momentosa veio a gerar várias narrativas. Segundo uma delas, ambos trocaram boletins de saúde, falando de asma e de cegueira, bem como de padecimentos sortidos. Segundo outra, desculparam-se por nunca se terem mutuamente lido. Outra ainda, veiculada por Joyce, põe Proust à mesa falando de duquesas enquanto ele próprio só se interessava por suas criadas. Após o jantar saíram juntos e tomaram o mesmo táxi com mais pessoas, depositando primeiro Proust e depois Joyce. Este fumou no carro e abriu uma janela, quase fazendo Proust desmaiar de horror. No dia 18 de novembro do mesmo ano Proust morreria e Joyce acompanharia o féretro.

Conforme Tadié, o encontro jamais mereceu menção ou apontamento de Proust. Tudo o que sabemos vem de terceiros ou do próprio Joyce . Dentre as várias anotações, a predileta dos estudiosos é aquela em que Joyce, escrevendo a Sylvia Beach em fins de outubro de 1922, aplica a dicção "Finnegans Wake" a títulos de livros de seu confrade, compondo anagramas com os nomes de ambos: "... Em Busca das Sombrinhas Perdidas por Várias Raparigas em Flor no Caminho de Swann e Gomorréia & Co. por Marcelle Proyce e James Joust".

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, autora, entre outros, de "A Donzela-Guerreira" (Ed. do Senac) e "Desconversa" (Ed. da UFRJ).

Livro da semana

Livro anterior

"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


Copyright Folha Online. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página
em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folha Online.