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22. Dublinenses - Textos publicados na Folha
Estranho intermezzo
(publicado em 05/08/2001)
JOSÉ MARIA CANÇADO Especial para a Folha
Tornou-se um lugar-comum, revisitado de forma um tanto aborrecida, dizer que os poemas de James Joyce (1882-1941) não são muita coisa. A própria cena de "Ulisses" na praia, quando Stephen Dedalus, seu alter ego, repetindo para si mesmo o que John Dryden teve que dizer para Swift: "Primo Swift, você jamais será um poeta", é lembrada a esse respeito.
Os poemas de "Música de Câmera", publicados pela primeira vez em 1907 (e publicados no Brasil pela ed. Iluminuras), foram vistos como incapazes de conferir ao seu autor o halo de força poética que, se não Joyce, pelo menos Stephen Dedalus sentia necessário para compor a imagem de si mesmo. Talvez fossem incapazes disso mesmo. O problema, observa Anthony Burgess em "Homem Comum Enfim", é que eles foram pouco apreciados e muito depreciados pelas razões erradas. De cara, esses poemas nos quais os temas eram particularmente autobiográficos caíram num halo que não era o deles, o da poesia imagista, e num panteão que também não era o mais apropriado: o do movimento do "Crepúsculo Celta" e o da paisagem mental e poética criada por Yeats.
Atualmente os poemas de "Música de Câmara" (o título, conta Anthony Burgess, veio da interrupção da leitura que Joyce fazia deles para uma mulher, que pediu que ele esperasse "para ir se aliviar, de maneira audível, atrás de um biombo", tendo esse "oráculo" sugerido o nome da coletânea) tendem a ser vistos pelos joycianos de forma mais adequada.
Apontam a sua peculiar filiação à poesia elizabetana; um certo tratamento rítmico que os aproximava da canção mesmo ("A época chora, o ritmo sorri", escreveu Richard Ellmann sobre Joyce); e a inesgotável nota irônica, que fazia com que o autobiográfico --que, no caso de Joyce, podia ser até meio sacrificial, com o ciúme, todos os espectros da traição, o "agon" sem trégua do amor, a vida numa Irlanda periférica e fágica, "comendo os seus filhos"-- virasse mito, ou melhor, visão de mundo e de arte. Poucos escritores como o autor de "Dublinenses" levaram tão longe a idéia de que, quando fala a alma, já não fala a alma.
"Pomas, um Tostão Cada", agora publicado pela primeira vez no Brasil, foram escritos entre 1913 e 1916, em Trieste, embora só tenham saído em livro em 1927. O título original "Pomes Penyeach" é uma composição entre "pommes" (maçãs), "poems" (poemas) e a "palavra valise" "penyeach" (um pêni cada). Na sóbria e bastante esclarecedora apresentação que o tradutor brasileiro faz desses poemas (com notas a respeito da origem, das circunstâncias e da arqueologia literária e emocional de cada um), ele observa que essa feição de pregão de rua do título é indicativa também da necessidade de Joyce de dar o livro meio de barato, mas sem depreciá-lo completamente.
Sabe-se até que o autor o tinha em conta bem mais alta do que parece. Ele os publicou quando já havia escrito "Dublinenses", ultimava "Um Retrato do Artista Quando Jovem" e andava concebendo "Ulisses". Seu registro é de um estranho intermezzo: como se nele Joyce se permitisse ser revisitado pela dor que deveras sentia e da qual era protegido, como escreve Chester Anderson, citado na apresentação, por seu humor e por seu "fantástico bordado de padrões, ritmos e significados". Só que dessa vez ela aparece "sem lenitivo nem elaboração".
É verdade: não parece haver lenitivo na pungência heróica, mas sem remédio, por exemplo, de "Ecce Puer" (considerado por muitos o mais belo poema do autor), no qual o júbilo do surgimento de uma criança ("Do passado obscuro/ Um menino foi feito...") sugere que um velho (o próprio avô Joyce) está se indo ("Uma criança dorme:/ um velho se foi./ Pai abandonado, ao filho, perdoe!"). O metro curto (e mais do que tal não caberia para a imensidão da experiência), os versos precisos e embargados ao mesmo tempo (traduzidos com perita emoção, como na terceira estrofe, na qual "Young life is breathed/ On the glass;/ The world that was not/ Come to pass" ganha a sequência aberta e categórica dos "a" e as belas rimas de sentido contrastante do segundo e quarto versos, em "Sopro de vida nova/ Ao vidro embaça;/ O mundo que não era/ Agora passa") quase recusam a despersonalização estratégica que Joyce tinha como ideal artístico.
É também de uma emoção quase premonitória o poema "Uma Flor Dada a Minha Filha" (a Lucia Joyce, que mais tarde, como se sabe, manifestaria distúrbios mentais). Premonitória no sentido de percepção extrema de beleza, como na sequência dos versos finais: "A silvestre maravilha/ Que nos olhos azuis tu velas, linda,/ Minha veiazulada filha". Veiazulada: a "palavra valise" no original em inglês é "blueveined", de irisadas significações e de uma beleza-limite para um pai que veria depois a filha adoecer.
Lírica e vivência
Esse quadro de emoção lírica e vivencial (presente nos outros poemas do livro) é quebrado apenas pelos poemas de "O Santo Ofício", um "destampatório" à maneira joyciana contra o provincianismo que ele execrava na vida cultural e literária irlandesa. Assim como o é também "Gás de um Bico", escrito contra um editor que foi sórdido com Joyce.
A modulação deliberadamente predominante é porém a da vida e das emoções relembradas, o amor, o ciúme, a Irlanda, a situação de pai, o envelhecimento, que Joyce topa reviver aqui como Shakespeare desenhou, "como cavalariço e açougueiro, cafetão e cornudo" (Richard Ellmann).
Ao escrevê-los ele não estava interessado na confissão, mas na experiência. Aí a força da sua arte.
José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (Scritta), biografia de Carlos Drummond de Andrade.
Pomas, um Tostão Cada
140 págs., R$ 26,00
de James Joyce. Trad. de Alípio Correia de Franca Neto. Ed. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3068-9433).
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