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22. Dublinenses - Textos publicados na Folha

A Dublin de Joyce

(publicado em 15/06/2002)

BETTY MILAN
Especial para a Folha, em Dublin

Dublin é o chofer de táxi que pergunta quando ouve você pigarrear: "Um sapo na garganta?". A poesia de saída, através da metáfora saltitante do pigarro, o sapo.

Você está no país dos bardos, e não é por acaso que Yeats, Prêmio Nobel de Literatura, é irlandês. Você lembra que Bernard Shaw, Samuel Beckett, Oscar Wilde, além de Joyce, também o são.

Num dos centros de Dublin, em Temple Bar, onde você desce, há um pub ao lado do outro. Por que não tomar uma Guinness? Você entra e topa num homem cuja natureza não é a dos poetas. Porque nasceu predestinado ao copo e está ali sozinho para beber. O olhar de quem não vê o que olha, perdido. Você não entende por que o homem bebe, porém tem certeza pela sua seriedade que ele está cumprindo um ritual cujo significado ele ignora. Talvez por isso sua expressão seja sinistra e faça pensar na história de James Joyce, filho de John Joyce, um funcionário público rico que se entregou ao álcool e arruinou a família --a mulher, que ele engravidou 17 vezes, e os dez filhos que ela teve.

Em Dublin, tudo evoca Joyce, que se exilou, mas escreveu sobre a cidade natal nos seus livros. A ponto de afirmar que, se Dublin fosse destruída, poderia ser inteiramente reconstruída a partir da sua obra. Tudo ali evoca o artista porque a arte para ele não se separava da vida. Os lugares que Joyce cita são lugares existentes.

Assim, a torre do primeiro capítulo de "Ulisses", onde se passa a cena entre Stephen Dedalus, Buck Mulligan e Haines, é Martello Tower, construída em 1804 para defender a cidade e depois transformada em 1962 no Museu de Joyce por Sylvia Beach, editora de "Ulisses". Lá, Joyce (Dedalus) esteve com Gogarty (Mulligan), um poeta amigo seu, e com Trench (Haines), amigo de Gogarty, que ameaçou o escritor com um revólver, obrigando-o a se retirar. Viveu a experiência que inspirou o início de seu grande romance.

Outro exemplo da conexão estabelecida pelos contemporâneos entre a obra e a vida é o James Joyce Centre, uma casa tombada porque nela morou Maginni, citado seis vezes em "Ulisses". Um professor de dança extravagante, que usava chapéu de seda, luvas amarelas e sapato de ponta fina.

E como Joyce é tão importante para os irlandeses de hoje quanto a cidade foi para ele, o J.J. Centre organiza vários passeios nos quais estabelece relações entre passagens dos livros e os prédios.

Quem vai a Dublin se pergunta por que Joyce é tão popular. Sobretudo se considerar a dificuldade que o escritor teve para sobreviver e para ser publicado. "Dublinenses", que ele acabou em 1905, só foi editado por sua conta em 1911 e a edição foi queimada por um desconhecido antes mesmo de ser distribuída. "Ulisses", editado em 1921 em Paris, foi imediatamente censurado na Inglaterra e nos EUA "por se tratar de obra pornográfica". Só se consagrou mundialmente em 1933.

A resposta para a questão relativa à popularidade pode ser encontrada na vida e na obra de Joyce, cuja única moral foi a independência à imagem da Irlanda que só pode se reconhecer nele. O escritor se valeu "do exílio, da astúcia e do silêncio" para produzir sua catedral de prosa, com ela se impor no mundo, se opor à Irlanda que ele não gostava e ser aceito pelos irlandeses. Prova disso é a festa de 16 de junho, o Bloomsday, dia em que Joyce conheceu sua futura mulher, Nora Barnacle, e em que Leopold Bloom vive a sua epopéia em "Ulisses".

Nesse dia, Molly, a mulher escandalosa de Bloom, está no centro dos acontecimentos e o seu célebre monólogo é rememorado. Porque essa personagem, como nenhuma mulher do seu tempo, expressou livremente o desejo do gozo e não dissociou o sexo do resto da vida, entregou-se ao fluxo de sua imaginação fazendo tão pouco das convenções sexuais quanto Joyce das convenções literárias. Molly não cantou o amor, talvez porque na Irlanda a relação entre homens e mulheres --sempre às voltas com o medo da concepção e a proibição do aborto-- não pudesse ser boa, mas fez a liberdade ressoar em todo o mundo, dando-nos uma possibilidade que até então não tínhamos.

Dublin é o Liffey, um rio de águas turvas, porém é também um rio de palavras, cujo som interminavelmente encantatório evoca o canto da sereia.

Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Clarão"

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