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23. A Mulher Desiludida - Textos publicados na Folha

Simone de Beauvoir escreve a Nelson Agren

(publicado em 15/11/1998)

Nelson, meu amor,

Foram só 23 horas até Paris, aportamos às 6h, amanhecia. Eu estava muito cansada depois de duas noites sem dormir, bebi café e tomei dois pequenos comprimidos para me manter acordada durante o longo dia. Paris estava muito bonita, um pouco nevoenta, com um céu cinza, suave, e o aroma das folhas mortas. Fiquei muito contente ao descobrir que tinha muito a fazer aqui, tanto que eu só devo ir para o campo o mês que vem. Primeiro, o rádio dá ao "Temps Modernes" uma hora inteira a cada semana para falar sobre o que quisermos, da maneira que quisermos. Você sabe o que significa a possibilidade de chegar a milhares de pessoas e tentar fazer com que eles pensem e sintam do modo que acreditamos que seja correto pensar e sentir. Isso tem de ser manejado com muito cuidado, e hoje de manhã tive uma espécie de conferência para falar sobre o assunto. Segundo, o Partido Socialista quer nos consultar sobre a possibilidade de estabelecer uma conexão entre política e filosofia. Parece que as pessoas começam a acreditar que as idéias são algo importante. Terceiro, havia inúmeras cartas de todos os tipos e muito trabalho para tocar na própria revista. Eu estava feliz, quero trabalhar, trabalhar muito. A razão por eu não ter ficado em Chicago é essa minha eterna necessidade de trabalho, de dar um sentido a minha vida pelo trabalho. Você tem a mesma necessidade, e essa é uma das razões pelas quais nós nos entendemos tão bem. Você quer escrever livros, bons livros, e, aos escrevê-los, ajudar o mundo a ser um pouco melhor. Eu também quero isso. Quero transmitir às pessoas minha forma de pensar, que creio ser a verdadeira. Eu devia desistir das viagens e todo tipo de diversão, devia desistir dos amigos e dos encantos de Paris a fim de poder ficar para sempre com você; mas não poderia viver somente de felicidade e amor, não poderia desistir de escrever e trabalhar no único lugar em que minha escrita e meu trabalho talvez façam sentido. O que é bastante difícil, pois, como lhe disse, nosso trabalho aqui não é muito promissor, e o amor e a felicidade são coisas tão verdadeiras, tão seguras. E, no entanto, ele tem de ser feito. Entre as mentiras do comunismo e do anticomunismo, contra essa falta de liberdade que grassa em quase toda França, algo deve ser feito por pessoas capazes e que se importem com a situação. Meu amor, isso não cria nenhuma divergência entre nós; pelo contrário, eu me sinto bem próxima de você nessa tentativa de lutar por aquilo que julgo verdadeiro e bom, seguindo seu exemplo. Mas, ainda assim, não pude evitar o choro convulsivo esta noite, já que passei momentos tão felizes com você, amei-o tanto e agora uma distância enorme nos separa.

Sábado - Estava tão cansada que dormi 14 horas, só acordei uma vez durante a noite para pensar em você e chorar mais um pouco. De tanto chorar, estava tão feia essa manhã que, ao cruzar com Camus na rua, ele me perguntou se eu não estava grávida: segundo ele, minha cara não deixava dúvidas!

Simone de Beauvoir descreveu seu longo e apaixonado relacionamento com o escritor Nelson Algren em seu romance "Os Mandarins" (1954) e no terceiro volume de sua autobiografia. Ela tinha 39 anos quando eles se encontraram, estava envolvida com Jean-Paul Sartre e escrevia "O Segundo Sexo". "Trabalho num livro sobre mulheres", ela escreveu de Paris para Algren. "Quando estiver pronto, os homens saberão tudo sobre as mulheres e, assim, não se interessarão mais por elas."

Tradução de José Marcos Macedo

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