Folha Online
Biblioteca Folha
25. No Caminho de Swann

Cartas são a pior parte da obra de Marcel Proust

(publicado em 02/01/1994)

Correspondência do escritor é chata; a de Flaubert mostra o início do romance moderno

MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas

Proust considerava medíocres as cartas de Flaubert. Um acaso editorial permite ao leitor brasileiro reparar duplamente a injustiça. Foi publicada pela Imago uma excelente seleção, as "Cartas Exemplares" de Flaubert (1821-1880); seguiu-se, pela Edusp/Ars Poética, um volume até certo ponto inexplicável, de correspondência entre Proust (1871-1922) e seu editor Gaston Gallimard.

Digo inexplicável, porque mesmo na França o interesse deste último livro estaria restrito a um pequeno círculo de especialistas proustianos. Só quem estiver preparando um doutorado na Sorbonne (a respeito, digamos, da indústria tipográfica francesa nos anos 20) há de ter esta "Correspondência Proust-Gallimard" como livro de cabeceira.

Ao longo de 600 páginas, o que mais se lê são: 1) queixas contra os revisores e tipógrafos, assinadas por Proust; 2) promessas de rapidez e eficiência no trabalho editorial, assinadas por Gallimard e seus colaboradores; 3) queixas quanto à distribuição e propaganda dos livros de Proust, assinadas pelo próprio; 4) respostas do editor; 5) problemas com direitos autorais, recibos, quitações, cálculos; 6) questões de saúde.

É uma pena; Proust é um desses autores que, uma vez lidos, nunca nos abandonam. Tomamo-nos de interesse pelas minúcias de sua vida pessoal, já que minuciosa e personalíssima é sua obra. Há um culto a Proust, há um culto a Stendhal, como não há um culto a Flaubert ou a Gide: os dois primeiros "fetichizem" mais o leitor; é como se não quiséssemos que eles tivessem morrido, e qualquer nova manifestação de vida que tenhamos deles (cartas, bilhetes, autógrafos, relíquias) torna-se valiosa por si mesma.

"Em Busca do Tempo Perdido" é um livro que dá pena acabar. Melhor relê-lo, entretanto, do que a essas cartas. De todo modo, o admirador de Proust poderá devorar a "Correspondência", vencendo o próprio tédio.

É que essas cartas formam um verdadeiro labirinto. Problemas com a tipografia se entrecruzam com pequenos pedidos de favores pessoais, suscetibilidades se remificam em arrependimentos, há mal-entendidos em cada parágrafo.

Proust devia ser infernal de tão chato -e seu editor infernal de tantos atrasos e burradas. Não sabemos quem tinha razão na maior parte dos casos, intrincadíssimos, envolvendo direitos autorais. Mas há coisas engraçadas.

Tudo leva a crer que Gallimard fugia dos telefonemas de Proust. Mandava a secretária dizer que ele não estava. Proust manda então cartas insinuando que Gallimard evitava seus telefonemas. Gallimard jura que não.

Em outros momentos, sente-se que Gallimard se encheu para valer e entrega a outro funcionário o encargo de responder a Proust. A coisa piora ainda mais.

Proust vê que está sendo excessivamente chato e tenta, por vias sinuosas, desculpar-se. Depois de cobrar uma dívida de direitos autorais, recebe alguns milhares de francos. Mas, para mostrar-se sensível às alegações de dificuldade financeira levantadas por Gallimard, propõe emprestar-lhe parte do que acabara de ganhar.

Durante uma viagem de Gallimard, Proust atazana sua assistente, a sra. Berthe Lemarié. As coisas azedam-se bastante, em meio a protestos de admiração mútua e fórmulas de polidez. Proust acaba sentindo-se culpado e, num dos raros momentos de graça literária de todo o livro, arrisca gentilezas. Diz que a sra. Berthe Lemarié (então por volta dos 40 anos) parecera-lhe tão jovem que ele se penitenciava de ocupá-la com assuntos profissionais, quando a imaginava brincando de amarelinha ou coisa parecida. Mas é um pequeno sorriso dentro de uma correspondência desgastante, cansativa.

Como se sabe, havia um problema prévio em toda relação entre Proust e Gallimard. A editora deste, a NRF (Nouvelle Revue Française) havia recusado o primeiro volume de "Em Busca do Tempo Perdido". A culpa foi de André Gide, que se arrenpenderia o resto da vida. Proust acabou publicando o primeiro volume na editora Bernard Grasset. Depois, foi acolhido pela Gallimard, mais "Moderna". Mas a toda hora lembra para Gallimard essa recusa inicial.

Mais detalhes na "Correspondência". Nada tão injusto quanto chamar Proust de "chato". Sua obra é um abismo de surpresas, de reviravoltas, de perturbações. Mas, se esse livro de cartas é chatíssimo, cabe também dizer que é muito "proustiano". Pois encerra um emaranhado de desentendimentos, de recuos e avanços, de ataques indiretos, de punhos de renda e luvas de pelica. Em todo caso, é o pior Proust que se pode imaginar. Só seria bom se o autor dessa correspondência fosse um personagem de Proust, e não o Proust real.

Nas cartas de Flaubert, entretanto, estamos às voltas como Flaubert real. Às vezes, até real demais, como muitos leitores de sua correspondência já notaram -o autor de "Madame Bovary" bufa, reclama, se estrafega, sufoca e sua a cada página que escreve; sofre o tempo todo com suas próprias exigências de estilista.

Mas, se a correspondência de Proust nos remete para o que há de pior no mundo proustiano, as caras de Flaubert nos apontam para um universo muito além do que é puramente "flaubertiano" -para os impasses, para as ambições, para o desafio de toda a literatura moderna.

É nas cartas de Flaubert que se registra, quiçá pela primeira vez, o propósito de se escrever um livro "sobre nada" -onde só o estilo e näo o assunto, contasse. Surge o projeto de romper com todo o emocionalismo romântico, em prol de uma literatura apenas "literária" -desumana, no sentido de Ortega y Gasset. Ao lado de tanta busca de "impessoalidade" e pureza material do estilo, há um comprometimento quase físico, corpóreo, do autor em sua obra: Flaubert dizia ter vomitado quando escreveu a cena do envenenamento de Madame Bovary.

As razões do corpo, as razões da escrita puramente literária, o problema do "assunto" (há temas intrinsecamente mais adequados à literatura do que outros?), tudo o que até hoje, ou pelo menos até ontem (nouveau roman, Beckett, estruturalismo etc.) perturbou um escritor aparece nestas cartas abordado com ímpeto quase inconsciente. E ao mesmo tempo, com uma enorme lucidez de propósitos e projetos.

Flaubert escreve cartas pra Victor Hugo, Baudelaire, Turguêniev, Maupassant, George Sand. São documentos capitais. A longa correspondência que ele manteve com sua amante Louise Colet e com seus amigos Maxime du Camp e Louis Bouilhet é apresentada, neste livro, em trechos decisivos. Não é algo que interesse apenas ao flaubertianos de plantão: em meio a solavancos, dores e exultações, assistimos ao nascimento da literatura moderna.

E é uma pena ver uma de suas consequências mais intemporais, menos submissas às tentações da moda e da conjuntura, como a obra de Proust, entregue à circunstancialidade menor e neurótica que nos revela sua correspondência com Gallimard. Mas os proustianos -considero-me um de carteirinha- têm o dever de perdoar essa publicação.

AS OBRAS

Correspondência Proust-Gallimard, de Marcel Proust e Gaston Gallimard. Edusp (av. Prof. Luciano Gualberto, tr. J, 374/6.º, Cidade Universitária, SP, tel. 011 813-8837), e Ars Poetica (Caixa Postal 57052). CR$ 9.800.

Cartas Exemplares, de Gustave Flaubert. Org., prefácio e tradução de Duda Machado. Imago (r. Santos Rodrigues, 201-A, RJ, tel. 021- 293-1092). 267 págs. CR$ 8.320.

Livro da semana

Livro anterior

"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


Copyright Folha Online. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página
em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folha Online.