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25. No Caminho de Swann

O lugar e a hora da traição

(publicado em 10/01/1999)

O ciúme na obra-prima de Proust esconde luta contra a inevitabilidade da morte

HAROLD BLOOM
especial para a Folha

O ciúme sexual é a mais romanesca das circunstâncias, assim como o incesto, segundo Shelley, é a circunstância mais poética de todas. O romancista da nossa era é Proust, na mesma medida em que Freud é nosso moralista. Proust morreu em 1922, ano de um ensaio sombrio e maravilhoso de Freud, "Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranóia e na Homossexualidade". Um e outro grandes conhecedores da ironia, celebrantes trágicos do espírito cômico, Proust e Freud não estão muito de acordo no que toca ao ciúme, nem à paranóia, nem à homossexualidade, embora os dois tomem como ponto de partida a consciência de que todos somos bissexuais por natureza.

Freud começa seu ensaio notando que o ciúme, tanto como o pesar, é uma reação normal e vem em três estágios: competitivo, projetado e delirante. O primeiro, que é o mais comum, resulta de uma combinação entre o pesar pela perda do objeto amado e a reativação da ferida narcísica --a primeira perda trágica da criança, que perde o pai do sexo oposto para o do mesmo sexo. O ciúme competitivo é normal: nem por isso deixa de ser um inferno, com direito às delícias da inimizade com o rival bem-sucedido, de alguma dose de auto-acusação e de uma parcela generosa de bissexualidade.

O ciúme projetado atribui ao parceiro erótico a própria infidelidade, ou os próprios impulsos reprimidos, e é visto com leveza por Freud, como relativamente inócuo, uma vez que sua natureza delirante é muito suscetível à exposição analítica das fantasias inconscientes. Já o ciúme delirante é algo de bem mais sério; também tem origem nos impulsos reprimidos de infidelidade, mas o objeto desses impulsos é alguém do mesmo sexo e isso, segundo Freud, nos faz cruzar a fronteira da paranóia.

O que os três estágios têm em comum é um componente bissexual, haja vista que até o ciúme projetado envolve impulsos reprimidos e estes incluem desejos homossexuais. Proust, nossa outra autoridade em ciúme, preferia chamar homossexualidade de "inversão", e numa fantasia mitológica estabeleceu uma linhagem entre os filhos de Sodoma, as filhas de Gomorra e seus sobreviventes no exílio. Inversão e ciúme, tão intimamente relacionados em Freud, tornam-se em Proust um par dialético, com a sensibilidade estética vinculada aos dois como o terceiro termo de uma série complexa.

Proust é um autor fecundo e generoso ao tratar do ciúme; ninguém jamais se dedicou de modo tão minucioso e brilhante a apresentar e ilustrar essa emoção; exceto, naturalmente, Shakespeare, em "Otelo", e Hawthorne, em "A Letra Escarlate". Os amantes enciumados de Proust --Swann, Saint-Loup e, acima de tudo, o próprio Marcel-- sofrem de maneira tão intensa que chega a ser necessário algum esforço para que a nossa empatia não passe do limite. Mas não é fácil determinar precisamente como Proust se posiciona com relação ao sofrimento deles, porque suas ironias são muito agudas e estão por toda parte. A comédia paira por ali, mas até a palavra "tragicomédia" soa inadequada para as dores compulsivas desses protagonistas.

A pior ironia de todas é ver que o ciúme não só expõe o que há de arbitrário em toda escolha de objeto, mas revela a suposta inevitabilidade da pessoa amada como uma máscara para a inevitabilidade da morte do amante. O ciúme de Proust torna-se assim muito parecido com a pulsão de morte. E nossa câmara secreta de tortura é reaparelhada a cada lembrança das proezas eróticas do outro: o que era a nossa delícia delicia os outros.

No ciúme, aquilo que Freud chamava ironicamente de superestimativa do objeto --a amplificação, ou aprofundamento da personalidade da pessoa amada-- começa a funcionar não como amplificação da vida (a exemplo do romance de Proust em si), mas sim como aprofundamento de um inferno pessoal. Um personagem como Swann vai se afundando cada vez mais ao reconstruir os detalhes prosaicos da vida pregressa de Odette, "com tanta paixão quanto o esteta que revira documentos disponíveis da Florença quinhentista, de modo a penetrar mais profundamente na alma da Primavera da Vanna ou da Vênus de Boticelli".

O esteta de vertente historicista --como o vitoriano Ruskin, tão admirado por Proust-- torna-se o arquétipo do amante ciumento, procurando no tempo perdido não uma pessoa, mas uma epifania. O ciúme se renova como a lua, perpetuamente tentando descobrir o que nem lhe interessa mais, até mesmo depois do objeto do desejo estar literalmente enterrado. Seu verdadeiro objeto é "aquele dia, aquela hora no passado irrevogável"; e mesmo esse tempo é menos real do que uma ficção, um episódio na história de evanescência da nossa própria identidade.

O ciúme sexual em Proust vem acompanhado de uma obsessão por questões de tempo e espaço. O amante ciumento que, como diz Proust, desenvolve pesquisas comparáveis às de um "scholar" que quer descobrir com suas indagações cada detalhe referente ao lugar e à duração de cada traição e infidelidade. Mas "será tão mais absurdo, afinal, lamentar-se que uma mulher que nem existe mais não tenha ciência de que descobrimos o que estava fazendo há seis anos do que desejar, para nós mesmos, que o público fale de nós com aprovação daqui a um século?... Os arrependimentos de meu ciúme retrospectivo tinham origem na mesma ilusão de ótica responsável, em outros homens, pelo desejo de fama póstuma".

A batalha estética pela imortalidade constitui uma ilusão de ótica, mas uma dessas ilusões sobre a vida que são necessárias à vida, como notou Nietzsche, e também uma ilusão sobre a arte que já é arte. Proust se desvia de seu precursor invejado Flaubert, na direção de uma confissão radical do erro.

Romance é inveja, amor é ciúme, ciúme é o medo terrível de que não haverá espaço suficiente para nós mesmos (incluindo espaço na literatura) e de que não haverá nunca tempo bastante para nós mesmos, porque a realidade da vida é a morte. Assim como Freud, Proust retorna ao profeta Jeremias, o sábio desagradável que proclamou uma nova interioridade para o seu povo. Também para Proust a lei está escrita dentro de nós e a lei é a justiça, mas o deus da lei é um deus ciumento, embora com certeza não seja o deus do ciúme.

Em "A Passagem do Complexo de Édipo", um ensaio escrito dois anos após a morte de Proust, Freud reflete memoravelmente sobre a diferença entre os sexos e chega ao adágio: "Anatomia é Destino". Anatomia é destino em Proust também, mas uma anatomia mentalizada. Os exilados de Sodoma e Gomorra, mais ciumentos até do que os demais mortais, tornam-se monstros do tempo, muito embora sejam também seus heróis e heroínas.

O complexo de Édipo nunca passa completamente em Proust, ou em seus principais personagens. O complexo de castração em Freud --no limite, o medo da morte-- é uma metáfora para o mesmo desejo velado que Proust representa por meio da metáfora complexa do ciúme. O amante ciumento teme ter sido castrado, ter sido roubado de seu lugar na vida, já ter acabado seu tempo legítimo. Seu único recurso é sair em busca do tempo perdido, com a esperança de que a recuperação estética, tanto da ilusão quanto da experiência, ainda seja capaz de promover uma ilusão mais elevada do que, tudo indica, pode ter sido o caso.

Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York; é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" e "Poesia e Repressão" (Imago). O Mais! publica mensalmente seus artigos.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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