25. No Caminho de Swann
Os caderninhos de Proust
(publicado em 30/03/2002)
Livro "Carnets", publicado agora na França, reúne anotações inéditas das cadernetas do autor, incluindo esboços da obra "Em Busca do Tempo Perdido"
ALCINO LEITE NETO de Paris
Em 1908, Marcel Proust ganhou de madame Strauss, viúva do compositor Georges Bizet, cinco cadernetas para anotações, compradas na chique loja inglesa Kirby, Beard & Cia., em Paris.
O escritor adorou o presente: "Eu estou encantado, eu lhe agradeço de todo o meu coração". Para a história da literatura, elas iriam adquirir um valor incalculável. Em quatro delas, Proust deixou os primeiros esboços de "Em Busca do Tempo Perdido" (A La Recherche du Temps Perdu), um dos monumentos do romance ocidental.
O livro "Carnets" (Cadernetas), publicado agora na França, reúne todas essas anotações do escritor, feitas entre 1908 e 1917. Fora a caderneta mais antiga, utilizada entre 1908 e 1911, é a primeira vez que as demais são publicadas. Não é uma edição facsimilar, mas reproduz, por um sistema de símbolos e outros recursos gráficos, todos os rascunhos, com seus cortes, rejeições, lacunas e pensamentos soltos.
As cadernetas permitem não apenas acompanhar a concepção da "Recherche", mas também as dúvidas estéticas e o método de escrita de Proust (1871-1922).
Elas trazem frases colhidas no dia-a-dia, cenas vistas ou rememoradas, trechos inteiros que irão depois para os livros, listas de nomes de gente e lugares e, no meio disso tudo, um bom número de endereços de soldados e rapazes de bairros pouco recomendados de Paris --possivelmente "homens de encontro".
As cadernetas tinham um bom formato para serem carregadas nos bolsos das roupas à época. Eram muito longilíneas, com cerca de 25 cm de comprimento e 6 cm de largura, em média. Proust começou a usá-las imediatamente. Mais tarde, elas lhe serviriam de referência para o conjunto de cadernos onde iria redigir a "Recherche" --95 no total.
Para diferenciar as cadernetas e poder remeter às anotações que cada uma continha, Proust deu nome a cada uma delas. A Caderneta 1 estampava na capa um jovem loiro, vestido de mantô verde. Proust chamou-a de "Grande Caderno Kerby (sic) Beard Rapaz". A Caderneta 2 levava a figura de uma loirinha, com uma túnica verde. Virou o "Caderno Kerby Beard Moça". A Caderneta 3 ganhou o nome de "Caderno do Senhorzinho" --com sua imagem de um homem moreno, com um longo sobretudo.
Na Caderneta 1, Proust ainda se pergunta se deveria dedicar a vida ao romance ou ao ensaio: "As advertências de morte. Logo você não poderá dizer tudo isso. A preguiça ou a dúvida ou a impotência se refugiando na incerteza sob a forma de arte. Será preciso fazer um romance, um estudo filosófico, eu sou romancista?".
Recheada de notas autobiográficas e referências literárias e filosóficas, a primeira caderneta traz pouco da "Recherche" e muito de "Contra Saint-Beuve" (só publicado em 1954), que é praticamente concebido ali. O primeiro volume da "Recherche", "No Caminho de Swan", apareceria em 1913. A publicação da obra-prima se estenderia até depois da morte do escritor, em 1927, com a edição de "O Tempo Redescoberto".
Na Caderneta 2, que o escritor utilizou entre 1913 e 1916, a "Recherche" já predomina. Proust está obcecado pelo seu universo ficcional. Os personagens e os lugares aparecem: Gilberte, Odette, Bergotte. Alguns, com nomes que mudariam depois --Vinteuil surge como Berget, Albertine ainda é Maria, a cidade de Balbec é chamada de Cricquebec e depois de Bricquebec.
Na Caderneta 3, usada entre 1913 e 1918, surge pela primeira vez a referência à música de Vinteuil, passagem célebre da "Recherche": "Para Vinteuil ainda fim da (sinfonia) de Franck...".
A Caderneta 4 foi utilizada entre 1914 e 1917 e também nela tudo gira em torno do romance. Proust revê partes já publicadas, acrescenta situações e frases, desdobra outras para os futuros livros, enfatizando a importância das anotações com as palavras "capital" e "capitalíssimo".
Para o leitor da "Recherche", os "Carnets" são uma espécie de livro mágico, cujos fragmentos decompõem e recompõem o mundo proustiano, produzindo novas surpresas e descobertas. Para qualquer leitor, as cadernetas demonstram como a maior literatura, para ser feita, exige paixão, obsessão, observação e muito, mas muito trabalho.
CARNETS - De Marcel Proust (1871-1922). Edição estabelecida e apresentada por Florence Callu e Antoine Compagnon. Editora Gallimard. 446 págs. 24,50 euros (cerca de R$ 50).
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