Folha Online
Biblioteca Folha
29. Sargento Getúlio

João Ubaldo Ribeiro investiga equivalência entre o bem e o mal

(publicado em 30/03/2002)

MARCELO PEN
crítico da Folha

"DIÁRIO do Farol", de João Ubaldo Ribeiro, é desses livros sobre os quais os críticos adoram escrever. É arguto, engenhoso, refinado. Há alusões a Sade, Shakespeare, Schopenhauer, Montaigne, Maquiavel. E tem muito sangue, assassinatos, envenenamento, loucura, traição, tanto quanto em "Hamlet", digamos. O que mais podemos querer?

O personagem principal é um velho ex-padre que narra sua história a partir de um farol situado numa ilhota deserta. Ele alcunhou esse seu farol de Lúcifer, o portador da luz. "É curioso", diz, "como o Lúcifer da Bíblia aparece apenas em Isaías, enquanto Satanás aparece muitas vezes, até claramente como mais uma das criaturas de Deus."

O velho afirma estar acima do bem e do mal, conceitos que, para ele, são intercambiáveis: "São ambos nomes para as mesmas coisas (...). Só fazemos o Bem porque somos maus. E só fazemos o Mal porque somos bons". Parece ter saído das páginas de Sade, em seu desprezo pela sociedade e pelo prazer em infligir a dor.

Mas, ao contrário de Sade, em cuja obra não há porquês nem densidade psicológica, há uma causa para muitas das ações perversas do pároco. O livro não deixa de ser uma espécie de confissão, de grande palco armado a fim de justificar as razões de um homem sem razão.

O pai é a razão. Filho de um cruel latifundiário, o protagonista guarda a memória de surras, torturas e humilhações. Pior: compreende que o pai matou a mulher para ficar com a cunhada. Desde cedo, o espectro materno vem sussurrar-lhe vingança.

É "Hamlet" às avessas, claro. Mas, diferentemente da peça de Shakespeare, desconfiamos da culpabilidade do suposto assassino. No romance de Ubaldo só temos a palavra do protagonista, e essa, sabemos, não vale nada. Não porque o personagem não seja honesto. Afinal, toda sua argumentação se baseia no fato de ele estar dizendo a verdade, de tudo estar exposto ali às claras.

A questão é que podemos duvidar não só de sua isenção psicológica, mas de sua sanidade mental. Embaralhando o mal e o bem, o personagem pode vir a enxergar o mal em tudo. Podemos dizer que o pai do protagonista matou-lhe a mãe tanto quanto Capitu traiu Bentinho em "Dom Casmurro". Ou seja, não temos certeza. Isso, é claro, não desmonta a lógica do seu bem enredado discurso.

Na primeira parte, vemos o protagonista dar início à sua desforra. Na segunda, ele, já padre, colaborador do regime militar, encerra a vingança contra o pai, além de perpetrar outra, contra uma personagem surgida no meio.

É Maria Helena, moça católica que depois passa a combater a ditadura. O cura se apaixona por ela, que recusa seus apelos, mesmo quando ele se dispõe a largar a batina. Para vingar-se, ele se recusa a galgar a hierarquia eclesiástica e fica na pequena paróquia.

O padre age como agente infiltrado em grupos de esquerda. Sob disfarce, participa de torturas. Comanda assassinatos. Tudo parece distante da sua primeira vingança inicial, mas não está. De pronto, nos mostra que ele pode estar contando a verdade. A sua, ao menos. Pois quem tem coragem de se desnudar de modo tão grotesco na segunda parte não precisaria mentir para justificar outros atos inomináveis na primeira.

Estamos diante de um raciocínio escolástico, ainda que em negativo. Em vez de conciliar fé e razão, o personagem procura mostrar que não há diferença básica entre o bem e o mal. Para isso, é inevitável a morte do pai, o detentor do saber arcano e odiado. Diante da ausência de sentido do mundo resultante, algo, para ele, próximo da loucura, só é possível se guiar por um farol: o facho baço que o inferno lhe proporciona.

Diário do Farol
Bom
Autor: João Ubaldo Ribeiro
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 25 (304 págs.)

Livro da semana

Livro anterior

"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


Copyright Folha Online. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página
em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folha Online.