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9. Rumo ao Farol - Textos publicados na Folha
A escolha da consciência
(publicado em 04/10/1998)
HAROLD BLOOM
especial para a Folha
Virginia Woolf pensava em "Mrs. Dalloway" como uma estrutura de ordem tal que "cada cena serviria para construir a idéia do caráter de Clarissa". Uma vez que a figura de Clarissa Dalloway está fundada, de um modo sutil, sobre o sentido que Woolf fazia de sua própria consciência, o resultado seria uma espécie de auto-retrato psíquico, deixando de fora apenas a circunspeção estética da autora. E é justamente esta circunspeção que ajuda a universalizar certos aspectos do caráter da personagem, apresentada implicitamente como um estudo do desenvolvimento de uma mulher (e não de uma grande escritora).
Escrito no mesmo período que viu surgirem as primeiras traduções inglesas dos casos clínicos de Freud --realizadas, aliás, graças aos esforços do círculo de Woolf--, o romance poderia correr o risco de virar um caso clínico também. Mas, em matéria de estética, Virginia Woolf jamais teve grande sede de sofrimento. Assim como seu "pai ausente", Walter Pater (para empregar uma expressão de Perry Meisel), a autora de "Mrs. Dalloway" aperfeiçoou-se na arte da evasão.
De modo análogo ao de sua maior ancestral, a Clarissa Harlowe do grande romance setecentista de Samuel Richardson ("Clarissa"), Clarissa Dalloway é, na verdade, uma heroína da vontade protestante. Seria bom ter isso em mente hoje, quando os caminhos da crítica, enfatizando questões de gênero, classe e raça, tendem a estimular a transformação de heroínas em vítimas. Clarissa Dalloway não é vítima de ninguém e sua individualidade transcende qualquer pressão social que pudesse deformá-la ou reprimi-la.
"A morte foi um abraço" --com essas palavras ela reflete sobre o suicídio de Septimus, seu "daimon" obscuro. Será só uma associação de Clarissa, ou nossa, ou de todos nós, se este abraço for vinculado ao "brilho abrasador, à revelação, ao sentimento religioso" de ter beijado Sally Seton 30 anos antes? Terá sido esse abraço uma pequena morte para Clarissa, ou será que todos abraços masculinos são mesmo uma morte, se comparados àquele brilho perdido? Não creio que o romance de Woolf nos permita responder a essas perguntas. O mundo de Clarissa Dalloway não permite a existência de um sedutor, como o Lovelace de Richardson; só Peter Walsh e Richard Dalloway e o dr. Bradshaw. Se há uma limitação estética grave em Woolf, aliás, é o fato de uma personagem masculina forte só ser admissível quando de natureza essencialmente autocastradora.
Até que ponto Clarissa é uma niilista? Associações entre amor e morte são típicas do alto romantismo, mas têm origens shakespearianas; e Woolf tende a escrever uma versão oblíqua do que há de romanesco em Shakespeare --com uma diferença ideológica protofeminista, mas cujo impulso estético é o sentido habitual de ter chegado tarde na história. A constatação nietzschiana de um vazio no centro da existência --a verdade que nos mataria se não fossem as máscaras da arte-- também está muito presente nela. Mesmo assim, Clarissa (ao contrário, talvez, do narrador de "Mrs. Dalloway") combate o niilismo com as forças da vontade. Ao longo do livro, há uma sugestão oculta de que Clarissa esteja resistindo ao niilismo do narrador; mas por outro lado também é possível pensar que o narrador se deixe tomar por um desejo de morte precisamente ao obedecer, com devoção exagerada, às tensões que vibram em Clarissa. Neste ponto os subterfúgios supremos da autora desafiam nosso impulso angustiado de encontrar uma possibilidade de interpretação.
Se Clarissa tivesse casado com Peter Walsh, teria abdicado de sua solidão. O eu protestante, solitário e inviolável, encontra um espaço de sobrevivência na união entre Clarissa e Richard Dalloway. Mas não continuaria sendo o eu protestante se não questionasse, repetidas vezes, sua decisão. Os processos de socialização desse eu compõem a história da classe dominante na Inglaterra, mas isso está longe de ser o foco do romance e se situa à margem do que há de mais central em Clarissa como personagem literária. O que é central é Septimus, o gênio vulnerável e alucinatório, que se manifesta em Clarissa sempre como uma percepção visionária, a um passo da loucura. O que a salva da loucura é sua imagem de um eu central, cristalino, a imagem pateriana de um estetismo ascético, tão presente para nós em Wallace Stevens quanto em Virginia Woolf.
A narrativa desse movimento, que nos leva do eu protestante à versão ascética de uma identidade estética, é a própria história do romantismo e Clarissa Dalloway encarna boa parte dessa história. O custo da confirmação de uma personalidade protestante é o isolamento, de tal forma que consciência e comunicação se tornam pólos opostos. Suicídio é comunicação; sobrevivência é consciência. Clarissa optou pela consciência, a um custo alto, assim como Septimus escolheu a comunicação.
Sua consciência é precisamente o sentido de seu isolamento, o que explica o suicídio de Septimus quase como uma expiação de Clarissa. A única alternativa para a morte de Septimus seria a dela; e, quanto a isso, ninguém esquece da agonia longa e impressionante de Clarissa Harlowe. Mas a Clarissa ancestral morre como uma espécie de santa protestante; e a Clarissa de Woolf é uma figura tardia, representando uma vontade protestante, pós-cristã, à beira do desespero:
"Havia uma coisa que tinha importância; uma coisa, escondida em camadas de conversa, desfigurada e obscurecida na própria vida dela, tombada dia após dia na corrupção, na mentira, na fala vazia. Isso ele fora capaz de preservar".
A marca mais forte de seu desespero é que Clarissa, ao entoar essa elegia por Septimus, não tenha um nome para a vontade isolada e inviolável, exceto "uma coisa". O gênio de Woolf tem a audácia de arriscar uma Clarissa essencialmente incapaz de se expressar, muito diversa da heroína eloquente de Richardson, ou das herdeiras dessa tradição em Jane Austen, George Eliot, Henry James e no amigo de Woolf, E.M. Forster. Essa é minha Clarissa: é isto o que Woolf está nos dizendo. E resta a implicação de ser esta a melhor Clarissa possível, na Londres da autora.
Ao contrário de Nietzsche, Walter Pater não acreditava que nós temos arte para não morrer da verdade. A verdade, para ele, é percepção e sensação, e apenas a arte tem capacidade de sustentar a verdade por mais do que um instante. Percepção e sensação não são o bastante, por si, para elaborar um romance, mas "Mrs. Dalloway" fica perto de aceitar o desafio. Uma comparação entre "Ulisses" e o romance de Woolf demonstra logo o efeito imenso do livro de Joyce sobre o dela e as vantagens de um naturalismo anterior, capaz de abranger muito mais do que percepção e sensação. O Leopold Bloom de Joyce é uma figura tão redonda como o rei Davi da Bíblia, ou Clarissa Harlowe. Já Clarissa Dalloway é um complexo de imagens; não só um amontoado de imagens fraturadas, mas mesmo assim uma reunião de percepções e sensações.
O triunfo da representação em Virginia Woolf pertence inteiramente à era de Freud. Leopold Bloom vem de um mundo mais antigo, no qual a redução do eu aos impulsos e defesas ainda não era algo de tão difundido. Nós continuamos vivendo na era de Freud, em que Leopold Bloom parece arcaico; mas Clarissa Dalloway ainda é uma de nós.
Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York; é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" (Imago) e "O Cânone Ocidental" (Imago). O Mais! publica mensalmente seus artigos.
Tradução de Arthur Nestrovski.
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