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9. Rumo ao Farol - Textos publicados na Folha

Micheal Cunningham se apropria de "Mrs. Dalloway"

(publicado em 03/03/2003)

FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

É preciso ter na linguagem um fio muito forte para deter o leitor usando de quase nenhuma trama. Virginia Woolf (1882-1941) o tinha --e entre os muitos que enlaçou está o norte-americano Michael Cunningham (1952).

Movido por sua adoração à autora inglesa, Cunningham publicou em 1998 o romance "As Horas", em que retoma o delgado enredo de "Mrs. Dalloway", escrito por Woolf em 1925, e o fragmenta ao longo de um dia na vida de três personagens: Clarissa Vaughan, uma editora na Nova York dos anos 90; Laura Brown, dona-de-casa na Los Angeles do pós-guerra; e a própria Virginia, em 1923, quando começava a escrever "Mrs. Dalloway".

O leitor já deve saber que o livro deu origem ao recém-estreado filme de Stephen Daldry. Por conta disso, a Companhia das Letras põe no mercado uma reimpressão de "As Horas", que saiu aqui em 1999, após ter rendido a seu autor os renomados Pulitzer e o Pen/Faulkner. O que o leitor não sabe é quão mais sutil é o livro de Cunningham na urdidura de suas histórias paralelas.

O autor se esmera em reproduzir a força da linguagem de Woolf; mas é na apropriação que faz do tema ou temas de "Mrs. Dalloway" que reside a complexidade de "As Horas".

A dúvida atormentadora sobre o acerto de decisões do passado sempre foi um mote sedutor para a literatura. É, de certa forma, o primeiro aspecto do livro de Woolf --que originalmente deveria se chamar "As Horas"-- e motivo também do livro de Cunningham.

Ao longo do dia em que dará uma festa, Clarissa Dalloway rememora sua juventude e suas opções. Seus "fantasmas" ganham carne na chegada inesperada de Peter Walsh, um antigo pretendente, que a flagra em plenos preparativos. Clarissa responde às dúvidas que a assolam com fatalismo: o tempo passou; foi assim.

A busca por se conformar com o próprio estado --mesmo sabendo que a vida esperada jaz num tempo remoto-- é o que move também as personagens de Cunningham ao longo de seu dia.

Laura Brown se casou com um herói da Segunda Guerra, Dan. Fazer o bolo perfeito no aniversário do marido é sua tentativa de sentir-se confortável nas próprias vestes. Clarissa Vaughan, por sua vez, prepara uma celebração para o poeta Richard, no dia em que ele deve receber um importante prêmio literário. Ele foi seu amor da juventude, convertido em grande amigo. Soropositivo, encontra-se em estado terminal.

Finalmente, também Virginia surge como alguém que se esforça ao máximo para se acomodar à sua escolha. Não escrever era, para Virginia Woolf, "inconcebível". Ao mesmo tempo, nunca na vida sentiu-se segura da única opção que vislumbrava para si.

O mero esforço de transpor o dia de Clarissa Dalloway para um cenário atual já não seria pequeno. O que Cunningham faz é ainda mais difícil: em lugar de cunhar personagens análogas às do romance de Woolf, ele pulveriza situações, atitudes e até nomes ao longo das três histórias que tece em "As Horas". Ao mesmo tempo, Cunningham cria também ecos entre suas três mulheres, em detalhes que se repetem, como se fossem estribilhos.

Com tal ardil, o autor consegue alcançar a questão que está no fundo do romance de Virginia Woolf e, talvez, de toda a sua obra. Ao condensar a vida de uma mulher em apenas um dia, Virginia Woolf exercitou abolir as horas do relógio em nome de uma compreensão da vida que extrapola ontem, hoje e amanhã, 1923, 1940, o fim do século 20.

Em "As Horas", o arco dos anos entre Virginia, Laura e Clarissa se desfaz, dando lugar a um só tempo contínuo, um dia dilatado, de gestação de possibilidades, um dia de dúvidas e inquietações, de considerações sobre vida e morte.

É na arte que o homem tenta vencer o rumo inevitável dos ponteiros. Cunningham sabe disso e, em seu livro, todas as suas personagens encetam esse escape --diferentemente de Woolf, que não dá a "Mrs. Dalloway" e seus circunstantes nem sequer essa fagulha de redenção.

Nessa diferença se encerra, por fim, a última homenagem deste livro curto, porém denso: um brinde a Virginia, que lutou, com sua pena, contra a loucura e o medo e, ainda assim, exausta, sucumbiu nas águas do Ouse.

As Horas
The Hours
Ótimo
Autor: Michael Cunningham
Tradução: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 27,50 (182 págs.)

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"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


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