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11. O Velho e o Mar - Textos publicados na Folha

A inquietude de Hemingway

(publicado em 18/07/1999)

MOACYR SCLIAR
especial para a Folha

Lembro que, quando Ernest Hemingway morreu, as notícias não mencionaram a causa da morte. Muito tempo depois ficou-se sabendo que o escritor tinha se suicidado, com uma arma de caça, em sua propriedade em Ketchum, Idaho. O fato reflete o escrúpulo da época quanto ao suicídio, mas reflete também uma perplexidade: ninguém podia imaginar que um homem corajoso e aventureiro como Hemingway pudesse terminar dessa maneira.

Mas esse destino já estava embutido em seu passado. Aos 22 anos Hemingway viajou à Europa na qualidade de correspondente de um jornal canadense, o "Toronto Star Weekly". Levava consigo uma maleta, contendo toda sua produção literária, contos e poemas. Essa maleta, ele a perdeu num trem. E não tinha cópia de nenhum dos textos. Agora: perder originais não é uma coisa rara entre escritores; mas perder toda a obra sugere que o jovem Hemingway não tinha muita certeza do seu valor --como autor e talvez como pessoa. Entre a perda da fatídica maleta e o tiro final há, portanto, um certo nexo. Mas há também grandeza. Há uma vida intensa. E há literatura. Em Hemingway, mais do que na maioria dos escritores, literatura e vida estão indissoluvelmente ligadas.

Nascido em Oak Park, Illinois, em 21 de julho de 1899, Hemingway era filho de médico. Em criança acompanhava o pai, clínico geral do interior, em atendimentos muitas vezes feitos em circunstâncias difíceis. Essa experiência marcou-o profundamente e apareceria de forma direta ou indireta em sua obra. Experiências marcantes, aliás, não faltaram a Ernest Hemingway, que teve uma vida movimentada, cheia de peripécias. Nesse sentido, ele seguia o ideal romântico do escritor que percorre o mundo em busca de emoções fortes --ideal este personificado, por exemplo, em Lord Byron.

Mas enquanto Byron --"mad, bad and dangerous to know", na expressão de sua contemporânea Lady Caroline Lamb-- entregava-se a todo tipo de excentricidades e descalabros, Hemingway era um homem mais sintonizado com os acontecimentos de seu tempo. Em 1917 apresentou-se voluntariamente para servir na Primeira Guerra Mundial. Chofer de ambulância, foi ferido em 1918, sofrendo comoção cerebral. Segundo o crítico Philip Young, esse trauma explicaria as características da obra de Hemingway -- é a "teoria traumática", que o próprio escritor nunca levou a sério.

Depois da guerra, ficou em Paris e viveu o clima dos loucos anos 20. Conviveu então com a "geração perdida" de americanos que lá se encontravam -- jovens artistas, escritores e intelectuais que bebiam muito e tinham muito talento. Foi aceito no grupo de Gertrud Stein, Ford Madox Ford e Ezra Pound. Em 1923 apareceu seu primeiro livro, "Three Stories and Ten Poems" --a mistura de gêneros sugerindo a indefinição própria de sua imaturidade. De qualquer modo o seu talento narrativo já estava ali presente e mais ainda em "The Sun Also Rises" ("O Sol Também Se Levanta", 1926), em que celebrou o seu grupo de expatriados.

Já a lembrança da guerra gerou "A Farewell to Arms" ("Adeus às Armas", 1929), uma bela e romântica novela, que o consagrou nos Estados Unidos. Essa ascensão rápida demais não deixou de prejudicá-lo. Àquela altura já estava de volta à América, dividindo o tempo entre a Flórida --onde pescava-- e Utah -- onde caçava. Dois casamentos fracassaram, e ele voltou-se contra velhos amigos como Scott Fitzgerald e John dos Passos; foi nessa época que passou a assinar "Pappy", apelido pelo qual veio a ser conhecido. Durante esse período, dedicou-se a escrever contos.

Atraído pela guerra civil na Espanha, para lá se dirigiu como jornalista. Ainda que tivesse descrito a situação política em Madri como "um carnaval de traição e podridão", manteve-se fiel à causa republicana, da qual era forte simpatizante. De novo, a experiência do conflito deu origem a um romance, o famoso "For Whom the Bells Tolls" ("Por Quem os Sinos Dobram", 1940). O título é tirado de um verso do metafísico poeta inglês John Donne (1573-1631): "Não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti"; e, a propósito, mostra que Hemingway, apesar das aparências, estava longe de ser um escritor intuitivo.

Leitor voraz, ele listava entre os autores que o influenciaram, além de Donne, Mark Twain, Flaubert, Stendhal, Tolstói, Tchecov, Shakespeare, Quevedo, Dante; e também Bach, Mozart, Goya, Giotto, Van Gogh. Muitas das obras de Hemingway foram levadas ao cinema, mas "Por Quem os Sinos Dobram" teve um sucesso especial: estrelada por Gary Cooper, no papel do americano ingênuo e idealista, e Ingrid Bergman, como a mocinha, fez multidões chorarem.

Se até então a vida de Hemingway tinha sido um misto de aventura e literatura, a partir daí tornou-se mais aventura do que literatura. Viajou por vários lugares em busca das emoções que pudessem lhe proporcionar a caça de grande animais, as touradas, as lutas de boxe, assuntos sobre os quais escrevia textos jornalísticos e que passaram a condicionar a sua vida. De um texto pronto e publicado dizia, por exemplo, que era "um leão morto" e portanto sem interesse. Depois da Segunda Guerra radicou-se em Cuba e ali permaneceu, mesmo depois da ascensão de Fidel Castro ao poder. Com o novo regime manteve uma relação distante, mas cordial. O bar que frequentava em Havana é ainda ponto de atração turística.

Mas seu talento literário parecia ter se esgotado. Então, em 1952, apareceu "The Old Man and the Sea" ("O Velho e o Mar"). Promovido furiosamente pela editora, o livro anunciaria a ressurreição literária de Hemingway. Funcionou: a obra recebeu o prêmio Pulitzer daquele ano e dois anos mais tarde o próprio Hemingway era agraciado com o Nobel. Quarenta anos depois, a repercussão de "O Velho e o Mar" parece um tanto exagerada. Trata-se de uma curta novela (127 páginas, na edição da Scribner) descrevendo a luta de um pescador com o peixe gigantesco que fisgou.

O que sensibilizou os leitores foi, sobretudo, o aspecto simbólico do texto: o velho era claramente o próprio Hemingway, o peixe com que ele lutou, a literatura ou a própria vida. O cinema mais uma vez ajudou: o filme, com Spencer Tracy no papel do pescador, popularizou a obra. O texto é puro Hemingway: o estilo seco, econômico, austero. O laconismo do macho americano, do herói do Oeste que, segundo o crítico Leslie Fiedler, lhe serve de modelo: "Para Hemingway há muitos Oestes", diz em "Love and Death in the American Novel".

No meu modo de ver, Hemingway sai-se melhor na ficção curta, na qual a busca pelo essencial ("Todo escritor deve ter um detector da merda", dizia) se torna imperativa. Alguns de seus contos estão entre os clássicos do gênero. "The Snows of Kilimandjaro" ("As Neves do Kilimanjaro") figura em numerosas antologias, como aquele fantástico parágrafo inicial em que o escritor fala da carcaça do leopardo encontrada no alto da montanha, e diz: "Ninguém explicou o que o leopardo estava procurando em tal altitude", frase que, de novo, pode ser um resumo da vida do próprio Hemingway.

Meu favorito, porém, é "The Killers" ("Os Assassinos"), que, como "As Neves do Kilimanjaro", foi filmado, e duas vezes, com direção de Robert Siodmak (1946) e Donald Siegel (1964). A história é simples, brutal mesmo. Dois matadores de aluguel entram num bar, procurando por um tal Sueco. Um garoto é despachado para avisar o homem de que ele corre perigo. Para sua surpresa, o Sueco diz que não mais fugirá, que é inútil. Os cineastas buscaram desvendar o mistério que envolve o Sueco --por que ele está sendo caçado? por que não reage?--, mas este é, no meu entender, um empreendimento dispensável: a grandeza do texto reside justamente nessa incógnita e na perplexidade do menino diante dela, a perplexidade de qualquer garoto que tenta, em vão, entender o seu pai. E o segredo da vida e da morte.

É inútil, disse a si próprio Ernest Hemingway em 2 de julho de 1961. Com a arma usada para abater a caça ele deu o repouso final à inquietude que o perseguia. Da qual a sua obra dá um significativo testemunho.

Moacyr Scliar é escritor, autor de "O Centauro no Jardim" (L&PM) e "Contos Reunidos" (Companhia das Letras).

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