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11. O Velho e o Mar - Textos publicados na Folha
A originalidade do rei leão
(publicado em 18/07/1999)
JAMES WOOD
especial para o "The NYT Book Review"
A imitação não é original; logo, nenhum escritor original é realmente imitável. Essa máxima se aplica a Hemingway e, paradoxalmente, explica por que sua influência sobre as letras norte-americanas tem sido tão grande e de valor tão questionável. O perigo de um estilo verdadeiramente original é que acaba tendo imitadores plausíveis, mas nunca terá algo que se aproxime dele. A repetição acaba por neutralizar aquilo que é imitável. É o que não pode ser imitado que é verdadeiramente original, não necessariamente por ter sido muito grande, mas pura e simplesmente por ter sido primeiro; assim, possui uma primazia inquebrável. Talvez seja esse o sentimento que nutrimos em relação a Hemingway: não sentimos que estamos na presença de um dos maiores estilistas literários, e sim que grande, nele, é o fato de, por assim dizer, ter antecedido sua própria má influência.
Não que isso fique claro com a leitura de "True at First Light" (319 págs., Scribner, US$ 26), iniciado em 1954 como registro de um safári africano recente, que, depois de chegar a mais de 800 páginas, foi abandonado por Hemingway e agora é lançado numa versão reduzida, editada por um dos filhos do autor, Patrick. O livro contém tudo o que é mais facilmente imitável no estilo de Hemingway, obrigando-nos a lembrar que, a partir de mais ou menos 1935, o autor foi se franqueando em pontos de venda cada vez mais desesperançados. As falhas do livro são as que viraram moeda corrente na atual literatura norte-americana. Há muito sentimentalismo masculino exagerado. Há, também, uma recusa em pensar, recusa essa que vem disfarçada como relutância em pensar sobre o que não é essencial. Apesar disso, o livro nunca chega a ser desinteressante. A linguagem ousada mantém o leitor atento, nem que seja apenas para estar preparado para suas raras saraivadas.
A excelente e abrangente biografia de Hemingway por Michael Reynolds, que se completa com este último volume ("Hemingway - The Final Years", de Michael Reynolds, 416 págs., W.W. Norton & Company, US$ 30), nos informa que o escritor e sua mulher, Mary, viajaram para o Quênia no outono de 1953 e ficaram no acampamento até março do ano seguinte. Ele conhecera Mary Welsh num restaurante londrino em 1944 e, apesar de ainda casado com Martha Gellhorn, começara um caso intenso com ela. Casaram em 1946, e esse seu quarto e último casamento se transformou num teatro móvel de guerra.
Reynolds faz uma análise aguçada da felicidade e do sofrimento criados e recebidos por ambos os parceiros. Em 1950, Gellhorn previu que Hemingway iria "terminar num hospício" e, no mesmo ano, Mary escreveu ao editor de seu marido, Charles Scribner, que Hemingway andava "truculento, brutal, abusivo e extremamente infantil... A impressão que tenho é da desintegração de uma personalidade". Um dos fatores dessa desintegração é o temor que Hemingway sentia de nunca mais conseguir escrever nada melhor do que "Por Quem os Sinos Dobram", lançado em 1940.
O perigo perpétuo do modo de escrever de Hemingway é que a recusa ao sentimentalismo, por questão de princípio, chega ao ponto de sufocar o sentimento e sua explicação. Com isso, a própria recusa se torna sentimental. A mesma coisa pode ser expressa nos seguintes termos: Hemingway é um grande escritor que conta a verdade, exceto quando sentimentaliza a narração da verdade e, com isso, falta à verdade. Ele falta à verdade sobretudo quando descreve a maneira como a maioria das pessoas pensa.
Essa nulificação do pensamento parece curiosa, à primeira vista, porque é óbvio que o estilo de Hemingway deve muito ao pensamento e à tentativa de representá-lo. Suas longas sequências de "e"s, a pressão das orações derramadas, a aleatoriedade cuidadosa dos detalhes visuais apresentados, tudo isso se vincula à narrativa em primeira pessoa de "Huckleberry Finn" e também à tendência modernista geral de transformar a consciência em fluxo. Hemingway pegou essa imitação dos movimentos do pensamento e a virou para fora, numa descrição dela mesma.
Esse tipo de escrita assume a forma do pensamento, mas não é pensamento, na realidade. Se assemelha ao fluxo de consciência, mas a todo momento essa consciência bloqueia o pensamento, ou permite apenas um mínimo de pensamento. Talvez seja assim que a mente funcione, mas não é isso que ela pensa. Com frequência maior, Hemingway utiliza a forma do fluxo de consciência e a aplica a descrições da natureza ou das atividades físicas de um personagem: "Estava agradável na barraca da cozinha com o bater forte da chuva e eu li e bebi um pouco e não me preocupei com nada".
Foi essa a revolução de Hemingway: transformar a narrativa na primeira pessoa no estilo original de um autor na terceira pessoa. Ninguém podia negar a força e beleza desse novo estilo. Mas, desde o início, ele continha suas perversões e mutações próprias. O perigo é de um tipo de escrita que, como em "True at First Light", se move como a mente, mas não possui mente, que sufoca o sentimento e estiliza esse próprio sufocar. É um estilo que ostenta sua veracidade negativa, mas que, na realidade, oferece apenas negação. "Não se pode descrever o rugido de um leão selvagem. Pode-se dizer apenas que se ouviu e que o leão rugiu. Não é nada como o som feito pelo leão no início dos filmes da Metro-Goldwyn-Mayer", escreve Hemingway. Mas, se por um breve momento na história foi importante para a literatura que Hemingway repisasse o que era indescritível --que desnudasse as descrições mais inverídicas de outros escritores--, esse momento não demorou a passar, ainda durante a vida de Hemingway, e o escritor se viu sem inimigos reais, contando apenas com a defesa daquilo que não tinha. "True at First Light" é um registro disso que ele não tinha e, como tal, serve como aviso de que Hemingway, enquanto patrimônio e influência literários, deve ser deixado em seu devido lugar.
James Wood é editor da "The New Republic". O texto acima foi extraído de uma crítica mais longa.
Tradução de Clara Allain.
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