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11. O Velho e o Mar - Textos publicados na Folha

O estilo na moda de um fora de moda

(publicado em 06/10/2001)

MARCELO RUBENS PAIVA
articulista da Folha

Um diálogo de Ernest Hemingway:

"Não fique preocupada comigo, filha."

"Gosto de ouvir você dizer filha. Diga de novo."

"Vem no fim de uma frase. Filha."

Um parágrafo de Hemingway:

"Eram dias perigosos e muito frios, estávamos sempre com fome e fazíamos muitas piadas."

Uma frase de Hemingway:

"O capim secava, não havia mais umidade no solo, e o vento vinha carregado de poeira."

Frases curtas, diretas ao ponto. Walter Benjamin decretava o fim da narrativa, enquanto Hemingway a revolucionava, levando para a literatura os elementos que, segundo Benjamin, sufocavam-na: o estilo jornalístico. Hemingway telegrafava em seus romances e contos, como se estivesse no "front" de uma batalha.

No primeiro trecho, o diálogo, marca registrada do autor, joga com o próprio diálogo. Ele está no conto inédito "Um País Estranho", no terceiro volume de "Contos de Ernest Hemingway" --com mais cinco histórias inéditas--, traduzido pelo escritor José J. Veiga, que a Bertrand Brasil acaba de publicar.

Em "Um País Estranho", um velho escritor leva uma garota deslumbrada e romântica a um motel de estrada da Flórida, mente repetidamente que a ama, enfia o seu corpo no país estranho dela, mas está preocupado mesmo é em escrever alguns contos para as despesas do mês e o sustento dos filhos. Parece que o autor narra uma de suas próprias aventuras sob os ares do Golfo do México.

No segundo trecho, também de um inédito, "Paisagem com Figuras", uma equipe de cinegrafistas documenta, na linha de tiro, uma batalha urbana da Guerra Civil Espanhola, cuja brutalidade e a falta de sentido chocam apenas a uma jornalista americana. São contos esquecidos, trechos descartados de romances inacabados e obras publicadas em revistas, como a "Esquire" dos anos 30.

Hemingway é a figura mais influente da moderna literatura, gênero reinventado por ele. Andava meio esquecido. Ou melhor, fora de moda. Sim, criam-se modas literárias, porque o mundo é besta e vazio, como é vazia também a picuinha arte versus ideologia.

Um novo debate aproxima ambientalistas de feministas de simpatizantes de alguma coisa, funde a cuca do leitorado fundamentalista e cria novas vítimas, como Hemingway, porque seus personagens atiram em veadinhos inocentes, adoram rifles, fumam com prazer, dirigem enquanto bebem e maltratam as donas.

Tais elementos narrativos perturbam os herdeiros da revolução dos direitos individuais que lotam as escolas no ambiente acadêmico. Os que torcem o nariz são os mesmos que se chocam com a frequência da palavra "nigger" (crioulo) em Mark Twain ("As Aventuras de Tom Sawyer").

Hemingway, "el macho", preferia pescar a educar os filhos, deu um tiro na fuça aos 61 anos, depois de crises de depressão e choques elétricos. Quando descreve a natureza, o faz como se a mirasse com olhos de caçador. Apoiou a Revolução Cubana, não era bom pai nem bom americano.

Diferentemente do complexo e asmático Proust, que quase não saía do quarto, ou do complexado Kafka, que quase não saía do bairro, Hemingway, que nasceu em Chicago, ganhou a sua primeira arma aos 12 anos, foi repórter aos 20, trabalhou como correspondente da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra, morou em Paris, Espanha e Cuba, andou caçando elefantes pela África, onde sofreu um acidente de avião, viciou-se em touradas, pescou no Caribe, ganhou um Prêmio Nobel e se deitou com muitas moças.

A literatura de Hemingway gira em torno de sua vida pessoal. Não se sabe o que é Hemingway, e o que é inventado por ele. Ele é o que escreve. Seus diálogos constroem a narrativa, conduzem a trama. Suas frases são curtas e econômicas. O autor tem mais o que fazer. Tem pressa.

O conto inédito mais surpreendente do volume é "Burro Preto na Encruzilhada". Foi escrito no fim da Segunda Guerra, e é simples entender por que nunca foi publicado. Trata-se da recriação de um cenário perturbador de uma guerra sem heroísmo.

O cenário, uma estrada francesa. O clima, fim da guerra. Soldados americanos e franceses fazem uma emboscada e fuzilam os alemães em fuga. A ironia é que os matam com armas alemãs, "mais leves e eficientes do que as americanas". Matam por engano alguns bêbados, um francês e um garoto. Não se discute a missão sem sentido. Não se sabe quem deu a ordem. A brutalidade é quase gratuita. O mundo é rude.

Hemingway trouxe para a literatura elementos de uma cultura popular desprezada: briga de galo, boxe, beisebol, tourada e caça. Os personagens são desertores, niilistas, vítimas da ilusão de que existe algo melhor no amanhã.

Em "Viagem de Trem" e "O Cabineiro", inéditos extraídos de uma obra inacabada, pai e filho abandonam tudo e viajam de trem até o Canadá. O pai bebe até desabar. O filho aprende os truques de uma navalha com o cabineiro. O filho não sabe por que viajam, por quanto tempo e para onde. Se tudo parece cru e sem esperanças, não culpe o autor. Culpe a nós mesmos, que criamos este mundo ínscio.

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