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12. A Consciência de Zeno - Textos publicados na Folha
Freud explica
(publicado em 12/10/2002)
ENEIDA MARIA DE SOUZA
A psicanálise, ciência do inconsciente, só poderia ter sido inventada no intervalo entre dois séculos, precisamente o 19 e o 20, e por iniciativa de um judeu austríaco, contemporâneo do decadentismo artístico e da crise da racionalidade positivista. Só poderia ter sido gerada no interior de uma sociedade burguesa, reprimida e sujeita à dramatização de histórias mentais. A descoberta da representação psíquica como resposta à realidade repressora anunciava a dissolução do sujeito individual e a insuficiência da linguagem em referir-se ao real.
Com Freud instaura-se, em definitivo, o saber calcado na suspeita, ao considerar a vida mental um sistema altamente sofisticado, no qual se processam falsidades, sublimações e deslocamentos. O século 20 abre com a publicação de "A Interpretação dos Sonhos", quando são postas em xeque as noções de irracionalidade onírica, magia e superstição, cedendo lugar à ciência do inconsciente e do desejo.
"A Consciência de Zeno", publicado em 1923 na cidade de Trieste e escrito antes do início da Primeira Guerra Mundial, é uma das primeiras e bem-humoradas reações às descobertas da psicanálise. O título já indica o tratamento irônico da narrativa confessional de Zeno Cosini, levada a termo por sugestão do analista, o doutor S. Ao assinar o prefácio, este se considera co-autor do livro, por ter encaminhado os originais para publicação, sem o conhecimento do autor e como vingança pela interrupção da terapia do analisando. A consciência refere-se à determinação da personagem em se apresentar como curado diante do doutor S., por estar gozando de uma "saúde sólida, perfeita", e não mais se comportar como doente imaginário.
A natureza da doença de que sofre Cosini é da ordem do imaginário, constituindo-se seja pelo vício do fumo, seja por inquietações próprias a todo ser humano: o medo de envelhecer e de morrer, o tédio de viver e o adultério, como entrega às pulsões e relações perigosas. Segundo Cosini, o comércio foi a causa de sua cura. Entregar-se ao comércio --no seu sentido literal e metafórico-- foi a saída para os problemas existenciais, ao se convencer de que na compra indiscriminada de qualquer mercadoria reside o sistema de trocas e de substituições dos valores. Alcança-se a saúde --e o lucro nas transações comerciais-- graças ao mecanismo de sublimação efetuado no interior das relações humanas: o que se perde é logo superado por outro objeto de desejo. Convencida de ter criado durante a vida um pacto comercial com os outros, de ter vivido o desejo alheio, a personagem aceita ainda fazer e entregar o diário ao doutor S., o que confirma a promoção do desejo do analista.
Aceitar a vida e agir de maneira indiferente aos fatos seriam para Cosini a prova de estar gozando de saúde invejável. A sua consciência se justifica pela própria escrita do livro, um ato de denegação, conceito psicanalítico indicador do ambíguo ato de negar e afirmar. A crítica à psicanálise e à posição do analista como lugar do poder atua também como preservação da "doença" do analisando. Daí se conclui ser o livro, paradoxalmente, um libelo pró e contra a psicanálise.
Artifício e invenção
No endosso da concepção moderna de literatura que se autodefine como artifício e invenção, Svevo assume o procedimento metalinguístico, largamente utilizado pelo romance contemporâneo. O texto autobiográfico se apresenta, desde o início, no seu estatuto de ficção, quando a paródia se contrapõe à verdade do escritor, mediante a encenação banalizada dos problemas existenciais, como a necessidade de parar de fumar da personagem, a morte do pai, o casamento, a amante e a participação numa associação comercial. Por um processo de sublimação, o comportamento de Zeno Cosini se move conforme um sistema de deslocamentos e descentramentos ininterruptos. Ações que poderiam resultar em efeito trágico, como a bofetada que Cosini recebe do pai na hora da morte, são facilmente resolvidas, em virtude da comédia de equívocos aí encenada.
A relação entre terapia analítica e invenção ou entre criação e mentira permite a aproximação, pela linguagem, do discurso terapêutico com o ficcional. Rompidas as barreiras antes reservadas à diferença entre ciência e ficção, o que já se anuncia no relato autobiográfico de Svevo é a falência da língua no seu objetivo de dizer o real, além da constatação da natureza ambígua do psiquismo humano: "Uma confissão escrita é sempre mentirosa. Mentimos em cada palavra toscana que dizemos!".
Por ser um intelectual também de fronteira, o escritor se sente mais à vontade para agredir a problemática psicanalítica, por meio do recurso irônico que se mostra na sua total eficácia (Trieste, em virtude do tráfico comercial e de sua posição geográfica, se insere na encruzilhada de diversas culturas contraditórias). Após a leitura do romance, revela-se o movimento constante da escrita onde prevalecem os atos de imprevisibilidade e falsidade, cometidos pelo homem sem qualidades, defensor de valores efêmeros e provisórios.
Contemporâneo de Pirandello, Proust e Joyce, Svevo soube criar uma narrativa sobre o nada, com base em um enredo banal, o retrato da vida burguesa de um doente imaginário, entregue ao ócio e aos problemas cotidianos que beiram a simplicidade. Renovador na maneira despojada de narrar e na linguagem desprovida da retórica de seus antecessores, o livro se impõe como um clássico da literatura italiana, ao introduzir não só a descrença nas grandes narrativas, mas a vacuidade das relações humanas. Capturadas por meio do jogo inócuo dos diálogos, essas relações são guiadas pelo ritmo lento da imaginação e do teatro mental.
A ambiguidade gerada pela relação entre realidade e ficção é fortalecida pela utilização da narrativa em primeira pessoa, permitindo aos defensores do realismo confundir autor e narrador, escritor e personagem. Não é sem razão que Octave Manonni, em "Ficções Freudianas", promove, em Paris, o encontro ficcional entre Joyce e um psicanalista de Trieste, que acusa Svevo de ter se servido de sua análise para desmoralizar a ciência que nascia. O diálogo cumpre o papel de desfazer o equívoco realista, ao romper o teor de verossimilhança entre a personagem do doutor S. e o analista de Svevo, doutor Edoardo Weiss, um dos iniciadores da psicanálise na Itália.
A narrativa autobiográfica desconstrói o limite rígido entre ciência e ficção, ao apontar a potencialidade enganosa e fugidia do ato de linguagem, praticada tanto pela literatura quanto pela psicanálise. Joyce encarnaria, no texto de Manonni, o alerta para a presença da alteridade como constituinte do sujeito-autor, assim como o teor plagiário da escrita que se impõe como escrita do outro. A autenticidade autoral do livro de Svevo já é desmitificada no prefácio de doutor S., que se coloca como responsável pela edição do romance.
"A Consciência de Zeno" merece ser lido por todos que se interessam não só pela construção do romance moderno, como pelo desencanto e o "spleen" que marcaram as grandes personagens finisseculares. Embora não tenha o traço experimental da obra de seu amigo e incentivador Joyce, nem de Proust a investigação minuciosa da memória, Svevo tem o mérito de trazer à superfície da linguagem um exercício de auto-análise mediante a qual imperam a neutralidade, a indiferença e o sucesso do homem comum.
A Consciência de Zeno
Italo Svevo
Tradução: Ivo Barroso
Nova Fronteira
(Tel. 0/xx/21/2537-8770)
416 págs., R$ 32,00
Eneida Maria de Souza é professora de teoria da literatura na Universidade Federal de Minas Gerais e autora de "Crítica Cult" (Ed. UFMG).
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