18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha
A crônica de uma casa infeliz
(publicado em 20/02/1994)
LUIS S. KRAUSZ
Especial para a Folha
"Todas as famílias felizes se assemelham; cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira". Com esta frase, talvez uma das mais citadas da literatura moderna, Leon Tolstói inicia seu romance "Anna Karenina".
Marianne Krull, em "Die Familie Mann - In Netz der Zauberer, eine Andere Geschichte der Familie Mann" (A Família Mann - Nas redes dos Magos, uma outra história da família Mann - Arche Verlag, Frankfurt, 91), embarca numa investigação psicológica de uma das mais ilustres famílias infelizes de nosso século: os Mann, sem os quais a literatura do século 20 indubitavelmente se veria privada de uma de suas mais férteis vertentes.
As várias formas de infelicidade familiar sempre estiveram entre os assuntos prediletos dos literatos. Afinal, como diz Marianne Krull, investigar a família dos outros nos leva, ao mesmo tempo, a investigar a nossa própria. E quem não tem a sua?
Os antigos gregos teceram um sem números de histórias em torno de uma família "maldita", a dos Atridas. E em torno destas fábulas Freud criou boa parte do seu arsenal psicanalítico, o que, mais uma vez, atesta o fascínio irresistível exercido por estas redes de histórias.
Literatura e psicologia, aqui, confundem-se e trocam de papel, pois a matéria com a qual lidam é a mesma. Isto fica mais do que evidente no estudo que Krull faz sobre a família Mann. Seu livro leva como subtítulo "Im Netz der Zauberer" ou seja, "Nas Redes dos Magos" (Thomas Mann era chamado por seus filhos de "zauberer", mago). Redes tanto no sentido de vias de comunicação - como os canais inconscientes que ligam, profundamente, as psiques dos membros de uma mesma família - quanto no sentido de redes que aprisionam.
O estudo de Krull inicia-se com a geração dos avós dos mais famosos dentre os Mann - os irmãos Heinrich e Thomas - e estende-se até os filhos destes. Investiga, portanto, quatro gerações.
O avô materno de Thomas e Heinrich, Johann Bruhns, emigrou para o Brasil no século 19, aqui casando-se com uma belíssima e morena brasileira, Julia da Silva. O casal vivia numa fazenda em Parati, ainda existente, numa vida que Julia Bruhns, filha do casal (e mãe de Thomas e Heinrich) retrataria de maneira idílica em suas memórias, escritas já na Alemanha.
Julia da Silva, avó de Thomas e Heinrich Mann, faleceu aos 28 anos de idade, no Rio de Janeiro. O pai, Johann Ludwig, levou os filhos para a Alemanha, para que fossem criados como alemães, em Lubeck. Dezessete anos mais tarde Johann Ludwig casar-se-ia com a mulher de seu irmão, recém-falecido, que além disto era sua prima, levando-a consigo de volta para o Brasil.
Deixou, porém, os filhos do primeiro casamento em Lubeck, onde Julia Silva-Bruhns foi criada num pensionato, longe da vida burguesa e colorida que conhecera em sua infância, e saudosa não só da mãe falecida, mas também das cores e perfumes do Brasil. E sobretudo, sentindo-se traída e abandonada pelo pai, que não hesitou em levar consigo a ex-cunhada para o Brasil, deixando, no entanto, seus filhos para trás.
Aí encontram-se as sementes que, nas gerações dos filhos e netos de Julia Bruhns, depois Mann, encontrariam solo fértil: incesto, traição, e sobretudo o conflito permanente entre o dionisíaco, tropical, alegre e descomprometido do sangue materno e a sobriedade austera, disciplinada, circunspecta e profunda do frio norte da Europa.
São estes os pólos em torno dos quais revolverão as existências de Julia Mann, que se casou, aos dezoito anos com o senhor Thomas Johann Heinrich Mann, e de seus descendentes. Julia era, de temperamento e de aparência, inteiramente uma mulher do Sul, dos trópicos. Suas grandes paixões eram a música, as festas, os bailes. E também, ao que tudo indica, os homens.
Seu austero marido, um riquíssimo herdeiro de uma das maiores casas de comércio de sua cidade era, ao contrário, a encarnação dos valores morais da alta burguesia alemã do século 19: cauteloso, avesso a qualquer forma de desperdício, cioso de sua reputação.
Um casamento quase inimaginável, não fossem as rígidas convenções que governavam a vida na pequena cidade de Lubeck, a importância que tinha, para Julia Bruhns Mann, uma vida de grande-burguesa, e a possibilidade real de se manter as aparências enquanto se cedia, aos impulsos dos desejos.
Os filhos do casal cedo aprenderão a manipular as limitações impostas por estes dados da realidade. O que se torna especialmente fácil depois do falecimento do patriarca, Thomas Johann Heinrich, ocorrido em 1891, quando seu filho Thomas Mann tinha 16 anos de idade.
O senador, no entanto, deixará um meticuloso testamento, em que descreve como se deve lidar com cada um dos membros da família para que permaneçam no "bom caminho", e quais os perigos que, em sua opinião, estão à espreita de cada um de seus familiares caso não sejam cumpridas suas rígidas determinações. E como uma maldição profética, os perigos aventados pelo patriarca enredam, aos poucos, seus filhos e sua mulher.
Cerca de um ano depois de sua morte, dona Julia, para quem Lubeck se tornara insuportável, muda-se para a mundana - e sulina - Munique, justamente com seus filhos, onde passa a viver de maneira que dificilmente seria aprovada pelo falecido.
Ali os filhos mais velhos - Heinrich e Thomas - vivem o fim da adolescência, enquanto que as irmãs Julia Elisabeth e Carla, e o caçula Viktor, ainda crianças, crescem num ambiente singular.
Heinrich - que já não morava mais com a família - criava novelas e romances, e correspondia-se com sua irmã Carla, convencendo-a a tornar-se atriz. Heinrich e Carla mantêm uma relação psicologicamente incestuosa. Baseada num desejo físico real, transforma-se numa macabra forma de simbiose psíquica, em que a irmã vive no palco - e depois na vida real - as fantasias de seu irmão. Inclusive o suicídio, imaginado por Heinrich para uma personagem em tudo inspirada em Carla.
Os filhos sempre sentiram uma atração irresistível por tudo o que a mãe representava. Heinrich Mann cedeu, ao longo de sua vida, à luxúria, escandalizando os seus familiares, e o poder do matriarcado é um dos temas recorrentes em sua obra, inclusive no tardio romance "Henrique 4.º" que gira em torno dos ardis tramados por duas mulheres em que se reconhece muito da personalidade de Julia.
Thomas vive, de certa forma, o papel a ele atribuído na psique materna. O que se torna especialmente evidente em suas "Confissões de Felix Krull". Mas o exotismo do sangue materno está presente em toda a sua obra, em especial no romance "Os Bruddenbrooks", que reflete a decadência de sua própria família.
Também Julia, irmã de Carla, suicidar-se-á, aos 50 anos, depois de enviuvar e de percorrer uma trajetória de afastamento das convenções burguesas semelhantes à de Julia, a mãe. E ambas dão o exemplo a Klauss Mann, filho de Thomas Mann, e a partir de um certo momento objeto dos desejos homoeróticos do próprio pai, que se suicidou em Cannes em 1949.
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