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18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha
Thomas Mann e a política alemã
(publicado em 22/01/1995)
ANATOL ROSENFELD
Determinados círculos nunca perdoaram a Thomas Mann sua evolução política após a Primeira Guerra Mundial. Lembro-me ainda hoje do juízo depreciativo feito por meu professor no ginásio de Friedenauer, perto de Berlim, quando na aula de alemão confessei minha admiração pelo autor de Tonio Krõger.
Um homem sem espinha dorsal, este Thomas Mann. Na (primeira) Guerra Mundial, nacionalista ortodoxo, ultraconservador, luterano, jogando a música e a cultura teutônica contra o Ocidente latino, a "civilização", a "literatura" e o racionalismo; e logo depois, após a fundação da República de Weimar, dando a mão à palmatória, descobrindo seu coração democrático e sua simpatia pelo Ocidente! Assim pensava meu professor ultranacionalista alemão.
Evidentemente, trata-se de uma compreensão errônea do que significa ter espinha dorsal. É claro que isso não quer dizer que se deva ser um verme oportunista, adaptar-se a todos os desníveis da imundície. Mas tampouco significa que se deva ter por espinha dorsal no corpo uma vara de cortina. Aquele que muda de posição por motivos íntimos e tem a coragem de confessar esta mudança abertamente merece nosso respeito.
Entretanto, não é questão apenas de uma interpretação equivocada do que significa uma atitude máscula, mas também de um estúpido mal-entendido, na medida em que a indignação dos professores nacionalistas alemães em relação à tendência conservadora das Betrachtungen eines Unpolitischen (Considerações de um Apolítico), escritas por Thomas Mann durante a guerra de 1914-1918, e à posterior evolução política do autor. Essas Considerações não eram a sistematização definitiva de um nacionalismo retrógrado, porém o monólogo apaixonado de uma pessoa atingida em seu foro mais íntimo, buscando uma explicação dos acontecimentos; é a obra de um homem vivendo na cisão e no divórcio consigo mesmo. "Na última palavra das 'Considerações' -escreveu recentemente Thomas Mann- eu já não estava lá onde eu estava na primeira. Mas os alemães continuavam lá. Ainda hoje parecem estar no mesmo ponto". Que ele, após a Primeira Guerra Mundial, tenha saído da cisão de si mesmo e chegado a uma "de-cisão", não foi consequência de circunstâncias externas, mas, sim, de um reconhecimento pessoal da situação histórica e da necessidade de uma mudança completa das condições sociais -uma decisão que, como descendente de antiga estirpe patrícia, deve ter-lhe sido bastante difícil.
O que sempre lhe importou foi a possibilidade de levar uma vida digna. Acreditava que o estado burguês conservador fornecesse as condições para tanto. Mais tarde, convenceu-se de que, para alcançar este alvo, o socialismo era mais adequado. E o fato é que ele, uma vez tomada esta decisão, lhe permaneceu fiel, como mostra seu comportamento inflexível no tempo de Hitler, algo tido como estúpido, mais uma vez, por determinados "emigrantes internos" de cuja exprobração foi objeto.
Contudo, muito mais lamentável é que justamente Alfred Doeblin haja tachado justamente Thomas Mann de "devorador de alemães" e aberto as colunas de sua revista ( Das Goldene Tor) a plumitivos medíocres para que estes, no mais miserável alemão hitlerista, pudessem levantar de novo contra Thomas Mann a crítica de que ele não seria suficientemente "elementar". Além disso, que acontecia muito pouco em seus livros... "e, assim, nos dois volumes do romance ('A Montanha Mágica') não acontece propriamente nada", queixa-se um certo P.E.H. Lueth. Por que não lê ele Edgar Wallace, onde sempre acontece algo e de quem é impossível desprender-se? Também "(em seus romances) só se critica e, sempre se torna a criticar de novo", prossegue Lueth.
Naturalmente, Thomas Mann não é bastante demoníaco para o jovem. Doze anos de demônios elementares não lhe estragaram o apetite. Criticar lhes sabe como desprezível, preferem a balbuciação e a mitologia velada. Se criticassem, poderiam ao menos dizer-nos o que entendem por "elementar". Deve tratar-se de algo bastante brutal e blasfematório -talvez de veados bramantes no tempo do cio, que dilaceram a casca das árvores com os chifres.
Na realidade, Thomas Mann refletiu profundamente sobre o "elementar" e conhece muito bem as "vantagens do caos", a mágica sedutora das "filtrações" e do arcaico. No entanto, tais poderes, por caros que lhe sejam, não devem impor-se, precisam estar subordinados à razão ordenadora. Pois a cultura "é a na verdade a inclusão piedosa e ordenadora, eu poderia dizer apaziguadora do noturno-monstruoso no culto dos deuses" (Fausto). No entanto, "o que vem de Deus é ordenado",
A propensão alemã para o "elementar", para o irracional, é um dos fundamentos espirituais mais profundos do nazismo. O que é o nazismo em sua natureza ética, além da consciente instigação e da glorificação sistemática do primitivo e do disciplinamento do caótico -disciplinamento, não para uma "nova ordem", mas para o superlativo satânico do caos, para a negação de todos os valores e para a consequente vitória de um imoralismo "elementar"? Precisamente estes problemas foram objetos das Considerações. Mas os alemães ainda permanecem lá (onde estavam). Não lhes agrada razonar (1), a palavra vem de Raison e em alemão fica sobrecarregada semanticamente.
Thomas Mann superou nele mesmo tais tendências e, no sentido hegeliano, as "suspendeu", por força do reconhecimento de que o futuro da humanidade está, como caminho a ser trilhado, na ordem planejada e racional e não no choque de interesses caóticos, individuais e anárquicos. Seu romance José é testemunho disto, pois o autor mesmo fala do New Deal, "da administração mágica da economia" efetuada pela personagem bíblica em tela.
Também Mann constata com melancolia que o fascismo tem grande futuro.
Naturalmente, já que seriamente... nunca foi combatido, nunca foi tampouco derrotado... O medo a suas atrocidades... é em geral sobrepujado pelo medo à sua alternativa, o socialismo, de modo que as almas estão abertas para ele. Os soldados americanos aprendem a conhecê-lo na Europa -poderiam conhecê-lo tão bem, igualmente, em casa, se em geral tivessem de conhecê-lo...
Tais palavras, proferidas por um autor que pouco antes havia recebido a cidadania americana, não são as de um oportunista. São palavras corajosas, palavras de uma pessoa muito experimentada, de um verdadeiro homem; um humanista, que observa com tristeza a progressão "demoníaca" de nosso tempo e se decide definitivamente contra a simpatia pela morte e pelo que existiu no passado, na medida em que determinam nossos pensamentos e ações.
1. Em alemão, rãsonnieren ("razonar", "criticar") tem uma conotação também pejorativa no tocante à ação e aos frutos da razão e do raciocínio. (Nota do tradutor)
Tradução de J. GUINSBURG
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