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18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha

Édipo cristão

(publicado em 24/04/2000)

BERNARDO CARVALHO Colunista da Folha

Quem lê "O Eleito" (1951), de Thomas Mann (1875-1955), logo entende o que fascinou o escritor alemão, autor do "Doutor Fausto", no poema épico medieval de Hartmann von Aue (1165-1215), em que se baseou para reescrever a lenda do santo que, nascido do pecado do incesto, chega a Papa depois de anos de penitência.

Hartmann von Aue fez uma das alegorias mais bem-sucedidas do princípio cristão da redenção pela penitência, com objetivos didáticos. Mann, por sua vez, usa o mito de "Gregorius" para expor, por meio de uma fábula humorada e comovente, tendo por cenário uma Idade Média imaginária, como o cristianismo se tornou uma das idéias mais geniais e poderosas da história ao operar uma perversão da lógica.

O princípio do cristianismo é a contradição. Para o cristianismo, o ser humano, feito à imagem de Deus, é contradição. Como pode nascer em pecado se procriar é uma virtude? Como sua vida pode ser compreendida como uma chance de expiação se a própria existência já é pecado? A lenda de Gregório faz a alegoria dessa contradição ao narrar uma epopéia inteiramente fundada no incesto.

O rei e a rainha de Flandres tentam há anos produzir um herdeiro, inutilmente. Fazem suas preces. Finalmente a rainha dá à luz um casal de gêmeos, mas não sobrevive ao parto. "Nós nascemos da morte", dirá o irmão à irmã, anos mais tarde, ao seduzi-la.

Os gêmeos crescem e, com a morte do pai (que por sua vez já nutria sentimentos incestuosos em relação à filha), não resistem mais ao desejo que sentem um pelo outro. A irmã fica grávida do irmão e dá à luz um menino.

O irmão, ao mesmo tempo pai e tio da criança (Mann insiste no poder do incesto de engendrar a desordem da linguagem, uma perda primordial dos sentidos que a religião vai tentar administrar com uma economia de culpa e perdão), sai pelo mundo em busca de penitência e morre. A criança é jogada ao mar num barril, acaba sendo salva por pescadores e é criada por um abade numa ilha remota.

Aos dezessete anos, ao descobrir sua verdadeira origem, o rapaz, agora chamado Gregório, sai à procura dos pais, com a idéia fixa de poder perdoá-los para também encontrar a salvação. Em sua peregrinação, liberta o reino sitiado de uma rainha e se casa com ela, como Édipo, sem saber que é a própria mãe.

A única diferença do mito grego é que, ao descobrir que vive e reproduz o mesmo pecado que está na sua origem, Gregório vai sair em errância pelo mundo, tentando expiar o pecado pela própria humilhação, até ser reduzido a verme, quando a misericórdia de Deus, em reconhecimento à sua penitência, fará com que se torne Papa.

No epílogo, numa tirada irônica, Mann adverte pela boca de seu narrador: "Que ninguém que se deixou entreter por esta história tire dela falsa moral e pense que, afinal, o pecado é coisa fácil".

Logo em seguida, vai lembrar o que está em jogo na moral cristã: "...É sábio adivinhar no pecador um eleito, e isso também é sábio para o próprio pecador. Pois a noção da possibilidade de ser eleito pode dignificá-lo e tornar fecundos os seus pecados, proporcionando-lhe vôos mais altos".

A idéia da penitência como missão é, assim, o que permite sobreviver a despeito das piores intempéries, sem expectativas em relação ao que não pode ser alcançado mas sempre na esperança da graça divina.

A grande invenção do cristianismo foi criar uma contradição que encobrisse o abismo e a falta de sentido da existência humana para, no lugar da catarse que a tragédia grega propunha pela arte, oferecer a solução simplista da misericórdia.

O Deus cristão precisa do pecado. Sendo Cristo o Deus dos pecadores, não haveria necessidade de sua existência, assim como não poderia haver vida nem virtude, se não houvesse pecado. É o pecado que põe o mundo cristão em movimento, num processo cíclico de culpa e expiação. O Deus cristão é aquele que ao mesmo tempo condena os pecado e se comove com eles, para curiosamente perdoá-los num movimento ininterrupto. O pecado é, no fundo, o grande bem do cristianismo. Se existir já é pecado, tudo passa a ser relativo. É pecado copular e não copular. É pecado nascer mas também não deixar nascer. Tudo depende da situação e do momento. Não importa o que você faça, porque sempre estará em pecado para que, pela culpa, possa alcançar a virtude. "Por que eu nasci? Deus amaldiçoou a hora em que nasci!", diz Gregório ao descobrir que está casado com a mãe.

Virtude e pecado passam a ser os dois lados da mesma moeda. Não há virtude sem pecado no cristianismo. A não ser no dogma, no que não tem lógica, na virgem que também é mãe. É esse o grande paradoxo do cristianismo, cuja alegoria a releitura de Thomas Mann, agora reeditada no Brasil, transforma numa preciosidade da literatura.

Avaliação: Ótimo
Livro: O Eleito
Autor: Thomas Mann
Tradutora: Lya Luft
Editora: Mandarim
Quanto: R$ 29,50 (272 págs.)

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Lançado: 21/12


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