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18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha

Liberdade contida

(publicado em 05/05/2000)

especial para a Folha

Numa das cartas que Edoardo Bizzarri, o tradutor italiano de Guimarães Rosa, dirigiu ao escritor mineiro, o traduzir é definido em certo momento como um "ato de amor, pois trata-se de se transferir por inteiro numa outra personalidade". São palavras um tanto vagas, mas exprimem uma verdade válida também para as traduções que Herbert Caro fez de livros de Thomas Mann: "Os Buddenbrooks", "A Montanha Mágica", "Carlota em Weimar", "As Cabeças Trocadas" e "Doutor Fausto".

É sem dúvida este último que oferece maiores dificuldades à tradução, como o próprio narrador Serenus Zeitblom reflete, no "epílogo" do romance, em relação às possibilidades de verter para o inglês "trechos excessivamente arraigados na mentalidade alemã". Respaldado, porém, pelo domínio integral do romance (e ainda por suas afinidades com a dicção serena e humanista do narrador), Herbert Caro enfrenta o desafio com uma soberania e liberdade que lhe facultam desviar-se por vezes da estrutura linguística, ou mesmo do significado, de uma frase isolada, sem contudo jamais transgredir o sentido mais profundo da obra. O leitor brasileiro do "Doutor Fausto" tem assim em mãos um texto plenamente confiável, ainda que note vez ou outra pequenas incorreções que uma revisão mais atenta teria evitado, começando com a data equivocada, logo na página de abertura, de 27 (em lugar de 23) de maio de 1943 como o início da narração.

Registre-se também que em algumas passagens o tradutor preocupa-se em buscar sinônimos para termos que não variam no original; assim, o mesmo substantivo "Kälte", frieza, e o adjetivo "kalt", frio, tão essenciais na história de Adrian (pois dotados de um "nimbo de pavor incompreensível para todos os que não os tenham conhecido no seu significado mais horroroso"), aparecem às vezes, desnecessariamente, como "frigidez" ou "frígido".

Lapso linguístico

Outro aspecto que mereceria padronização: no último capítulo, durante o patético discurso em que expõe a convidados o seu testamento musical, "A Lamentação do Doutor Fausto", Adrian comete, em decorrência de distúrbios cerebrais, toda sorte de "lapsus linguae". Num desses pronuncia a palavra "Deus" ("Gott") como "Dius" ("Got", com a vogal o alongada e fechada). Mas acontece que esse "lapsus" é o mesmo que já fazia o pequeno Nepomuk em suas preces noturnas, que Caro vertera então como "De-us".

É primorosa, sem dúvida, a tradução do capítulo 25, em que um Diabo proteiforme discorre sobre o pacto e a doença doadora de genialidade, sobre a precária situação da música no século 20 e a realidade indescritível da "espelunca" infernal: "Meu prezado amigo, convém, portanto, que se contente com symbolis quem quiser falar do Inferno". No entanto pode-se dizer que o texto português fica muito aquém do substrato arcaico do original. Uma pesquisa filológica mais aprofundada poderia ter fornecido ao tradutor um repertório mais amplo de arcaísmos portugueses ("tudesco" é aqui um termo dos mais frequentes).

Assim, as interjeições com que o Demo pontilha sua fala remetem ao século de Lutero e da "História do D. Fausto": "Potz hundert Gift!", "Potz Fickerment!", "Potz Stern!", sendo "Potz" uma corruptela de "Gott", expressões aliás que ainda povoam um romance como o "Simplicissimus" (1669).

Os equivalentes da tradução, bem menos expressivos, são meros "Bolas!", "Puta merda!", "Com a breca!".

Contudo descuidos isolados ou soluções menos felizes não podem empanar o reconhecimento que devemos a essa tradução que soube captar com mestria o tom, o ritmo, a perspectiva que moldaram o original. Caro revela igualmente domínio íntimo dos vários assuntos e temas tratados no romance, em primeiro lugar a teoria musical. Cite-se como exemplo a descrição, no penúltimo capítulo, de "A Lamentação do Doutor Fausto", com a sua nota final que por longo tempo permanece vibrando na alma, suspensa no silêncio "como uma luz na noite": "O sol agudo de um violoncelo, a última palavra, o derradeiro som que plana no ar e se extingue, lentamente sumindo numa fermata em pianíssimo".

Em alemão, "sol agudo" é a nota "g" ("das hohe g"), inicial da palavra "Gnade" (graça) a que Mann quis aludir para conferir um acorde de esperança à sombria história de Leverkühn (e da Alemanha hitlerista). Se a tradução renuncia a tal alusão, o sentido do original fica plenamente preservado com esse "sol", que não só corresponde ao "g" da antiga notação musical, mas também à sugestão de luz que se levanta no final do romance.

(MARCUS MAZZARI)

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