Folha Online
Biblioteca Folha
18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha

Mann se esconde atrás da ficção

(publicado em 05/05/2000)

PRISCILA FIGUEIREDO
especial para a Folha

A editora Nova Fronteira inaugura a reedição das obras de Thomas Mann com um volume que reúne "Morte em Veneza" e "Tonio Kröger", traduzidas por Eloísa Ferreira Araújo Silva. Essas narrativas figuram entre as mais importantes do escritor e da novelística alemã. Elas compartilham temas e obsessões, mas "Morte em Veneza", publicada em 1912, aprofunda "Tonio Kröger" e, apesar da moldura menor que a novela proporciona em relação ao romance, utiliza a paródia, transita entre o registro realista-psicológico e o mítico, dá tratamento sinfônico às contradições de seu personagem principal. Isso repercute no fraseado, que ganha ondulações novas e um colorido bem mais matizado que o do texto anterior, devido ao poder sinestésico avassalador que uma Veneza putrefata e orientalizada exerce sobre os sentidos e o espírito de Aschenbach.

Thomas Mann era filho de cônsul, descendente de uma família de veneráveis burgueses alemães e de uma brasileira belíssima, com vocação para a arte, Júlia da Silva Bruhns, que passou os primeiros cinco anos de sua vida em Angra dos Reis, tendo sido levada depois, junto com as irmãs, para a longínqua Lübeck.

Anatol Rosenfeld abordou em vários ensaios sobre o escritor esse motivo biográfico, que retorna disfarçado e ampliado psicologicamente em toda a obra de Thomas Mann e é convertido num símbolo da posição precária ocupada por seus personagens, entre o empenho burguês pela vida e pela ação e a irresistibilidade das energias irracionais e dissolventes. Nesse sentido, a presença de elementos como o sono, o mar, a mulher ou o rapaz de origem exótica (húngara, russa, indígena etc.) configurariam o elemento estranho que uma vez se infiltrara no seio da família luterana, tradicionalmente marcada pela "normalidade burguesa" e pela ética do trabalho, e assinalara o início de um irrefreável processo degenerativo.

Mas o que era decadência também poderia significar a expansão máxima das possibilidades da vida e do entendimento. E de uma estirpe solar, afeita ao comércio diurno e ao protocolo social, saíram dois artistas como Thomas e Heinrich Mann, sintomas de degenerescência, de aperfeiçoamento contínuo ou de ambos _talvez reflexão e cisão do que fora uma feliz unidade.

O autor de "Os Buddenbroocks" não negará, no entanto, sua origem paterna, ou melhor, o que ela simbolizava para sua imaginação, e não vai necessariamente, como um romântico alemão, olhar o mundo de um andar acima e glosar infinitamente o seu vazio e sua dúvida. Em certa altura de "Morte em Veneza", Aschenbach observa como ele reproduzira a mentalidade do pai na condução do ofício de artista, realizado metodicamente, com obstinação e severidade burguesa. É nesse aspecto que Thomas Mann rejeitava todo libertinismo romântico, toda boemia, por mais que seus personagens tenham uma atração imensa pelo caos e pela doença e se sintam por vezes seres especiais (porque ainda é forte aqui a concepção romântica de artista).

Não é à toa que ele dedicou um ensaio fervoroso a Tchecov, escritor dos mais trabalhadores, sem a autocomplacência dos "eleitos". Basta ver o professor do "Tio Vânia", um intelectual que sempre viveu da atividade dos outros e que, no entanto, não produziu nada de intelectualmente relevante. Vânia tem uma vida de boi, trabalha literalmente feito um burro de carga (dos livros vãos escritos pelo professor) e assim até o fim, como o autor russo, ainda que a beleza e o ócio adorável de Helena de fato exerçam poder dissolvente sobre ele.

Thomas Mann é, como Tchecov, artista da ironia temperada pelo tato (burguês), como diria o jovem Lukács. Porque não se trata propriamente da ironia romântica, em que o sujeito nega a sociedade e busca preservar a poesia de seu coração de toda corrupção e da prosa dos seres normais e sociáveis. Trata-se, antes, de uma disposição amorosa, de uma "ironia erótica", na expressão do próprio Thomas Mann, e isso está na base de sua concepção de romance. É um olhar amplo, assimilativo, realista, não misantropo, que acata o mundo e admira, portanto, os que têm uma postura graciosa em sociedade.

Assim como Tonio Kröger apenas num momento se sente superior aos belos e burgueses Inge e Hans, para depois lamentar profundamente que sua fama de escritor não tenha atraído a atenção deles, que, felizes e sem dar por si, continuam a passear os olhos num livro sobre cavalos, e aos quais, na verdade, sempre invejou. Porque eles são a encarnação da Graça, e só quem se tornou refém do ressentimento não suportaria que eles se destacassem numa reunião social, simples que são!, e despertassem a admiração de todos por seu gesto delicado e sua fronte luminosa.

No final da novela, Tonio/Thomas permanece um "déclassé", fleumático demais para os artistas e esquisito demais para os burgueses. Uma ternura profunda por personagens ridículos e trágicos como ele, sobrepujada, não obstante, pelo amor à vida comum de um Hans. Um amor, é verdade, com "um leve toque de desprezo". Isso será confessado em tom paródico em "Morte em Veneza", no diálogo entre Sócrates, o sábio, e Fedro, a graça. Essa combinação de desprezo e ternura é virtuosisticamente enunciada quando o velho apaixonado diz ao moço que "o amante é mais divino que o amado, pois o deus está presente no primeiro, mas não no outro_ talvez o pensamento mais terno e irônico que jamais foi concebido".

Priscila Figueiredo é formada em germanística e mestranda em literatura brasileira na USP

Avaliação: Ótimo
Livro: Morte em Veneza/Tonio Kröger
Autor: Thomas Mann
Tradutora: Eloísa Ferreira Araújo Silva
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 23 (184 págs.)

Livro da semana

Livro anterior

"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


Copyright Folha Online. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página
em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folha Online.