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18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha

O "Big Bang" de uma obra-prima

(publicado em 03/12/2002)

Anotações no meu diário de 1945 revelam-me que no dia 22 de dezembro daquele ano recebi a visita do correspondente da "Time Magazine" em Los Angeles (do centro da cidade até nossa casa é uma hora de automóvel), que vinha tomar satisfação de uma profecia feita por mim 15 anos antes e que parecia não querer se cumprir. Naquela época, tinha escrito um breve relato biográfico, "Lebensabriss" (1), também traduzido para o inglês, em cuja conclusão, em parte brincando com algumas simetrias e correlações numéricas em minha vida, fiz a conjetura, bastante contundente, de que entregaria a alma a Deus no ano de 1945, aos 70 anos, portanto na mesma idade em que minha mãe. Segundo o jornalista, o ano em questão havia quase chegado ao fim sem que eu tivesse mantido a palavra, e ele queria saber como eu justificaria para a opinião pública o fato de ainda estar vivo.

Minha réplica não foi exatamente do agrado de minha esposa, pois já havia algum tempo minha saúde vinha preocupando seu zeloso coração. Ela tentou me interromper, protestar, rejeitar as explicações que o entrevistador ia arrancando de mim das quais até então eu a tinha poupado. É mesmo uma coisa curiosa, eu disse ao rapaz, essa de profecias; às vezes elas não se cumprem de forma literal, mas de um modo alusivo, obscuro, duvidoso, inequivocamente acabam por se realizar. Há sucedâneos. É certo que meu amor à organização não fora suficiente para ocasionar minha morte. Mas como o próprio visitante podia constatar, foi de fato no ano previsto que minha vida _em termos biológicos_ declinou a um ponto até então por ela desconhecido. Embora ainda tivesse a esperança de recuperar as forças vitais após tal abatimento, meu estado era bom o bastante para garantir-me clareza na mente, e eu lhe seria muito grato se ele e sua estimada revista também se dessem por satisfeito.

Três meses depois de proferir tais palavras, chegou o momento em que atingi o nadir do declínio biológico: uma doença que alcançou seu ponto crítico exigindo uma intervenção cirúrgica, interrompendo durante meses todos os meus hábitos e submetendo minha natureza a uma provação das mais inesperadas. Menciono este fato porque nele parece residir uma notável divergência entre a força vital biológica e a espiritual. Os tempos de bem-estar físico e de saúde inabalável, tempos de firmeza no passo e serenidade física, não são necessariamente abençoados pela produtividade. Os melhores capítulos de "Carlota em Weimar" escrevi sob a tortura de uma infecção do nervo ciático que se prolongou por mais de meio ano, presa de dores horrorosas, indescritíveis a quem nunca as conheceu, com o corpo doente buscando noite e dia uma posição para escapar do suplício. Em vão. Após tais noites _que Deus me poupe de as reviver_ o momento do café da manhã trazia um certo alívio ao nervo em pleno ardor inflamatório, e sentado à escrivaninha em alguma posição bizarra, todo torto, eu enfim experimentava a unio mystica com Ele, o "astro da mais bela altura". E apesar de todo este tormento, a ciática não chega a ser das moléstias mais sérias, ou das que mais fundo possam nos atormentar vida afora. Em contrapartida, o período do qual estou falando, para o qual previra a minha morte, foi uma fase de verdadeiro declínio, lento e progressivo, de minhas forças vitais, uma inconfundível "debilitação" biológica. E precisamente nesta fase originou-se uma obra que, desde seu aparecimento, preserva uma irradiação muito peculiar.

Seria determinismo querer encontrar no enfraquecimento físico causa e condição de um trabalho que congregou o material de minha vida inteira, em parte sem querer, em parte num esforço consciente de sintetizá-la e unificá-la, e que portanto não poderia deixar de conservar grande carga vital. Fácil seria inverter a causalidade e ver na doença um débito desta obra que me consumiu mais que qualquer outra, vindicando minhas forças mais profundas. Assim interpretaram a sucessão dos fatos alguns benevolentes observadores de minha biografia, que, ao me ver em estado tão deplorável, não hesitavam em concluir: "É o livro". E não cheguei a concordar com eles? É nobre a sentença que reza: "Quem perder a sua vida, achá-la-á" (2), sentença que não tem menos direito de domicílio na esfera da arte e da poesia do que no âmbito da religião. A carência de força vital jamais causou o sacrifício de uma vida, e não foi este gênero de privação que alguém _coisa estranha..._ escreveu aos 70 anos seu livro mais "louco". Prova disso foi a ligeireza com a qual, para alívio dos médicos e sulcado por uma cicatriz do peito às costas, recuperei-me da cirurgia para levá-lo a cabo...

Mas é a partir de meus breves apontamentos diários daquela época que vou procurar reconstruir a história do "Fausto", inserida que foi no tumulto e na emergência dos acontecimentos externos, para mim e para meus amigos.

Em novembro de 1942, enquanto as batalhas por Stalingrado (3) envolviam a cidade em fogo e fumaça, após algumas semanas de reflexão decidi adiar a conclusão de "José, o Provedor" (4), e ir para a costa leste do país. Esta viagem, em que fui acompanhado pelo manuscrito da palestra sobre a tetralogia quase concluída, levou-me a Chicago, Washington e Nova York, e foi rica em encontros, cerimônias e produtividade. Entre outras coisas, proporcionou-me o reencontro com Princeton e os amigos do período em que lá vivi: Frank Aydelott, Einstein, Christian Gauss, Helen Lowe-Porter, Hans Rastede da Lawrenceville School e seu círculo, Erich von Kahler, Hermann Broch e outros. Os dias em Chicago estiveram sob a égide da guerra na África, com notícias excitantes sobre a passagem das tropas alemãs pela parte não-ocupada da França, o protesto de Pétain, o embarque das tropas de Hitler para Túnis, a ocupação italiana na Córsega, a retomada de Tobruk (5). Nos jornais, lia-se em abundância sobre as febris medidas defensivas dos alemães em toda parte onde havia possibilidade de invasão, sobre os sinais de que a frota francesa passaria para o lado dos aliados. Ver Washington em estado de guerra foi, para mim, uma novidade impressionante. Outra vez hospedado em Crescent Place, no palacete de Eugene Meyer e sua bela esposa, observei com admiração a área pesadamente militarizada em torno do memorial de Lincoln, os escritórios, as barracas e pontes, os trens passando ininterruptamente carregados de material bélico. O calor era sufocante, um "indian summer" tardio. Em um jantar na casa de meus anfitriões, ao qual compareceram os embaixadores brasileiro (6) e tcheco com suas esposas, a discussão girou em torno da cooperação americana com Darlan (7) e o problema da "expediency". As opiniões estavam divididas, e não calei minha repulsa. Após a refeição, ouvimos no rádio o discurso de Willkie, que acabara de retornar de seu One-World-Tour. A notícia da importante vitória naval nas ilhas Salomão (8) elevou os ânimos.

(1) Lebensabriss (Sumário da vida), 1930 (N.do T.)

(2) Mateus 10, 39: "Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor a mim achá-la-á" (N. do T.)

(3) Cerco de Stalingrado, agosto de 1942 a fevereiro de 1943, primeira derrota significativa dos alemães na Segunda Guerra Mundial e começo do declínio do expansionismo hitlerista (N. do T.).

(4) José, provedor (1943). A tetralogia escrita entre 1926 e 1943 compreende os romances: As histórias de Jacó (1933), o jovem José (1934) e José no Egito (1936) (N. do T.).

(5) Base militar inglesa no Egito ocupada pelos alemães em 1940, recuperada em fevereiro de 1941 (N. do T.).

(6) O embaixador brasileiro era Carlos Martins Pereira e Souza, empossado em 1939 (N. do T.).

(7) Em Novembro de 1942, o almirante francês François Darlan (1881-1942) desligou-se do governo colaboracionista de Vichy e sinalizou querer colaborar com os Aliados. Foi assassinado no mês seguinte por um partidário de Charles de Gaulle (1890-1970) (N. do T.).

(8) Ponto estratégico no oceano Pacífico ocupado pelos japoneses e retomado pelos ingleses em 1942. Atual Papua Nova-Guiné (N. do T.)

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