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18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha
Obra desvela gênio épico de Thomas Mann
(publicado em 03/02/2002)
MARCUS MAZZARI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Depoimentos de escritores sobre o processo de criação literária ou, mais particularmente ainda, sobre a gênese de uma obra propiciam muitas vezes ao leitor a oportunidade privilegiada de adentrar uma esfera em que vigora o que Thomas Mann chamou certa vez, de maneira um tanto idealista, de "mistério de elevada predileção".
Tanto maior é esse privilégio quando se trata da gênese de um dos maiores romances do século 20, como é o caso do livro que a editora Mandarim coloca agora à disposição do leitor brasileiro.
Publicado em 1949, dois anos após o romance sobre "a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrada por um amigo", como diz o subtítulo, o relato de Mann entrelaça fatos de várias ordens. Em primeiro lugar, expõe circunstâncias de sua vida pessoal (sobretudo o enfrentamento de várias doenças) durante a redação da obra, entre 1943 e 47, no exílio californiano; reconstitui impressões que os desdobramentos da guerra causavam no meio que frequentava, isto é, o de intelectuais e artistas alemães e o da elite americana; comenta sua disciplinada luta com a vasta matéria épica que tinha pela frente assim como a lenta sucessão dos capítulos; e detém-se nas fontes a que recorreu para a criação, aos 70 anos, do seu "livro mais selvagem".
Destacam-se aqui, como é sabido, os nomes de Nietzsche, de Schoenberg e do Fausto medieval, personagem de um livro anônimo de 1587. Mas o relato também descortina ao leitor outras fontes que contribuíram para a extraordinária envergadura enciclopédica do romance, como a trágica existência do compositor Hugo Wolf, a filosofia de Kierkegaard (cujo livro "Ou Ou" o romancista estudou meticulosamente), peças e sonetos shakespearianos (em especial a comédia "Love's Labour's Lost"), cartas de Lutero (de onde saem por exemplo os nomes dos estudantes peregrinos que, no belo capítulo 14 do "Doutor Fausto", debatem temas como arte, socialismo, juventude) ou ainda a cena dos "Irmãos Karamazov" em que o diabo aparece à mente febril de Ivan, uma das inspirações para o capítulo-chave do romance alemão.
Mesmo silenciando sobre outras influências, algumas explícitas, como o conto de Andersen "A Pequena Sereia", outras veladas, que os intérpretes vêm escavando até hoje, o relato espanta pela profusão do material organicamente processado no enredo romanesco ou incorporado apenas como "citação". Para esse caso, Mann utiliza o conceito de montagem, que busca definir ao comentar a transposição de detalhes da biografia de Nietzsche para a de Adrian: a experiência no bordel de Colônia, sintomas da sífilis aí contraída, formulações sobre o diabo extraídas de "Ecce Homo" assim como passagens de cartas e até mesmo as circunstâncias da última visita que o amigo Deussen, portando um ramalhete de flores, faz ao filósofo "já mergulhado na escuridão psíquica".
Fundindo realidade e irrealidade, a citação, diz o escritor, "tem algo especificamente musical, não obstante o elemento mecânico que lhe é próprio; além disso, a citação é realidade que se transforma em ficção, ficção que absorve o real, uma mistura particularmente encantadora e onírica das esferas".
Mediante a técnica da "montagem" ingressaram ainda na ficção romanesca passagens do manuscrito de Adorno "Filosofia da Nova Música", a cuja colaboração tão generosa quanto decisiva Mann rende reconhecido tributo, e do "Tratado de Harmonia", de Schoenberg, o que custou ao romancista, por parte do criador do dodecafonismo, a acusação de plágio (em outro contexto, Mann justifica seu direito de valer-se de tudo o que podia enriquecer e adensar o romance com uma nova citação, desta vez de Molière: "Je prens mon bien o- je le trouve".)
Mas, por mais sincera que possa ter sido a disposição do autor em reveliar os meandros da criação do grandioso romance, o relato sobre a sua gênese é também um texto literário (como aliás sugerido no subtítulo "Romance de um Romance") e, enquanto tal, por vezes ambíguo, meramente alusivo ou mesmo evasivo. Não é por certo indispensável para a compreensão do "Doutor Fausto", mas traz valiosos subsídios para uma leitura mais aprofundada.
Acima de tudo, porém, possibilitará ao leitor perceber com maior clareza como o gênio épico de Thomas Mann realizou, a partir de múltiplas e variadas fontes, uma composição coesa e tão bem afinada no tom sereno, humanista e ironicamente distanciado que emprestou ao seu narrador fictício.
Marcus Mazzari é professor de teoria literária na USP e autor do livro "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (Ateliê)
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