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18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha

A consciência do mundo

(publicado em 03/02/2001)

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

O MAIOR tormento de boa parte dos personagens de Thomas Mann (1875-1955) é decorrência de um conflito entre o espírito e a vida. Há muito dessa condição trágica em clássicos como "Morte em Veneza", "A Montanha Mágica" e "Doutor Fausto", mas também nos contos reunidos em "Os Famintos e Outras Histórias".

Por uma razão ou outra (por velhice, por deformidade, por doença, por repressão, por sensibilidade ou por talento artístico), esses personagens se vêem fora do mundo, com a capacidade de ver o mundo de fora. É a margem que lhes garante a distância, o foco e a consciência que os outros, que "vivem simplesmente", não podem ter. No caso do artista, é a alteridade que lhe permite apreciar a beleza do mundo que o cerca. É a condição da sua arte: para ver a vida, é preciso estar fora dela. Para criar a beleza, é preciso desejá-la.

Nos contos de Mann, o homem de espírito, transformado em consciência do mundo, anseia pela beleza, que é inconsciência, o oposto de sua condição solitária de "voyeur" e "outsider", mas que se o integrasse também não lhe permitiria mais apreciá-la ou criá-la. A relação paradoxal de falta que o homem de espírito estabelece com a vida é metáfora do desejo que desapareceria se pudesse ser saciado. A literatura, nessa perspectiva, passa a ser sublimação.

Em Mann, é recorrente a imagem romântica do gênio: o espírito e a consciência que o fazem artista também não o deixam viver a felicidade dos que ele observa. Assim como ao velho a consciência é a desilusão de sua juventude, há uma contradição entre ser artista e viver. "Ah!, só uma vez, por uma única noite como aquela, não ser artista, ser apenas homem! Escapar uma só vez da maldição que ressoava em seu ouvido, dizendo: 'Você não tem o direito de viver, precisa criar! Não deve amar, mas saber!'." (em "Os Famintos").

Ser artista é uma missão no sofrimento. É querer arrancar o mundo da inconsciência, sabendo ao mesmo tempo que sem ela a beleza não existiria. É esse paradoxo que provoca a arte como sublimação, consciência da beleza. Em "Hora Difícil", o autor chega a uma metáfora muito feliz para traçar o perfil desse escritor que cria o que lhe falta, "como o caramujo traz a voz do mar de onde foi retirado".

Mann é obcecado não só pelo homem de espírito, que não participa da vida pois está "condenado" ao próprio talento, mas por personagens marginais e estranhos, párias cuja condição social ou física também os obriga a observar tudo do exterior. "O que há com esse homem solitário, de ar tão extraordinariamente desgraçado? (...) Seu rosto é o de alguém que levou um soco violento no meio da cara, entre risos de desprezo dos outros" (em "Tobias Mindernickel").

O homem à margem é o sujeito do desejo por excelência. O mundo é aquilo de que ele não faz parte, o outro que ele não pode alcançar. Ele ocupa o lugar da alteridade absoluta, onde só há desejo e impossibilidade. E de nada adianta tentar sublimar a falta e garantir sua autonomia pelo culto do espírito. De nada adianta tentar substituir a ausência de vida exterior pela riqueza de uma vida interior.

"Renunciei a essa 'felicidade exterior', esquivando-me de servir à 'sociedade', e organizando uma vida sem os 'outros'(...), mas esse talento foi o que me destruiu. A indiferença, isso, sim, seria uma espécie de felicidade... Mas não consigo ser indiferente em relação a mim mesmo, só sei me avaliar com os olhos dos 'outros', e agora estou morrendo de remorsos", diz o protagonista de "O Diletante".

Para esses personagens famintos de uma fome insaciável que os faz ser o que são, não há autonomia, só alteridade. Não há felicidade, só desejo. E essa é a sua maior consciência. "Ela chegara _e embora ele tentasse da melhor maneira defender a sua paz, a vinda daquela mulher despertava todas as forças que desde sua juventude procurara suprimir, sentindo que lhe causariam tormento e destruição", escreve Mann em "O Pequeno Sr. Friedemann", a história de um homem sensível, condenado à solidão por uma deformidade decorrente de um acidente na infância.

Os Famintos e Outras Histórias
Erzählungen
Ótimo
Autor: Thomas Mann
Tradução: Lya Luft
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 39 (345 págs.)

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Lançado: 21/12


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