18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha
Música literária e arte da blasfêmia no "Doutor Fausto"
(publicado em 11/10/2002)
THOMAS MANN
Música literária e arte da blasfêmia no "Doutor Fausto"
30 de dezembro de 1945
Caro Dr. Adorno,
Gostaria de lhe escrever uma carta acerca do manuscrito que deixei recentemente com o senhor, e que certamente o senhor já está a ponto de ler. Não tenho a sensação de estar interrompendo meu trabalho com isso. Saber que a composição estrambólica e talvez impossível (à medida que ela está pendente) está em suas mãos tem algo de excitante para mim; pois em meus estados de cansaço, cada vez mais frequentes, eu me pergunto se não faria melhor em abandoná-la, e, importa um pouco a cara que o senhor fará, se eu me atenho a ela.
Aquilo sobre o que anseio receber uma resposta comentada é principalmente o princípio da "montage", que se estende de maneira peculiar, e talvez bastante chocante, por todo esse livro --e, com toda a franqueza, sem fazer nenhum segredo. Ainda há pouco voltou a me chamar a atenção, de forma meio divertida, meio inquietante, como tive de caracterizar uma crise de doença do herói, recolhendo no livro, de modo literal e exato, os sintomas de Nietzsche, como eles aparecem em suas cartas, junto com cardápios prescritos etc., por assim dizer colando-os uns sobre outros, eles que são conhecidos de todos.
Desse modo, utilizei, de acordo com a "montage", o motivo da venerada e da amada, permanecendo invisível, nunca encontrada, evitada na carne, a senhora Von Meck de Tchaikóvsky. Historicamente dado e conhecido como é, eu o colei e fiz as bordas se desvanecerem, afundando-o na composição como um tema mítico e sem lei, sabido de todos (a relação é para Leverkühn um meio de tratar a proibição do amor, o mandamento da frieza feito pelo Diabo).
Um outro exemplo: lá pelo fim do livro, eu emprego visivelmente, e a modo de uma citação, o tema dos sonetos de Shakespeare: o triângulo a que o amigo envia o amigo em direção à amada, a fim de que ele o anuncie --e ele "se anuncia a si mesmo". Certo, eu transformei isso: Adrian mata o amigo, que ele ama, ao expô-lo, através do vínculo com aquela mulher, a um ciúme assassino (Ines Rodde). Mas isso altera pouco o caráter de roubo descarado da apropriação.
'Clichês míticos'
O recurso ao "Je prends mon bien o- je le trouve", de Molière, parece a mim mesmo não ser lá suficiente para desculpar esse procedimento. Poder-se-ia falar que é uma tendência da velhice ver a vida como produto cultural e na forma de clichês míticos, que com dignidade esclerótica se prefere à invenção "autônoma".
Mas eu sei demasiado bem que me exercitei desde cedo em uma espécie de plágio elevado: por exemplo, o tipo do pequeno Hanno Buddenbrook, para cuja exposição eu copiei sem cerimônia o artigo atinente de um léxico de conversação, como que "pondo-o em verso".
Acabou se tornando um capítulo famoso. Mas seu mérito consiste somente em uma certa espiritualização do que é mecanicamente apropriado (e no truque da comunicação indireta da morte de Hanno). O caso fica mais complicado, para não dizer mais escandaloso, quando na apropriação se trata de materiais que já são por si mesmos espírito, ou seja, de um empréstimo literário real, executado com um semblante como se o abocanhado fosse justamente bom o suficiente para servir às próprias idéias de composição.
Com razão o senhor supõe que eu tenho em mente aqui as intrusões insolentes --e, espero, não de todo desastradas_ em certas partes de seus escritos de filosofia musical, que muito carecem de desculpa, particularmente porque o leitor não pode por enquanto constatá-las, sem que, por amor da ilusão, fosse dada uma possibilidade real de remetê-lo a elas.
'Não recuar'
É curioso: minha relação com a música tem alguma vocação, eu sempre entendi de música literária, sempre me senti meio que um músico, apliquei a técnica da trama musical no romance, e ainda há pouco, por exemplo, Ernst Toch atestou expressa e enfaticamente, num voto de felicidade, meu "nível de iniciado musical".
Mas, para escrever um romance de músicos, que sugere por vezes até mesmo a ambição de vir a ser, entre outras coisas, e simultaneamente com outras, um romance de música --disso faz parte mais do que "nível de iniciado musical", a saber: nível de estudo, o que simplesmente me falta. É por isso também que desde o início estava decidido a não recuar, num livro que tende de qualquer modo ao princípio da "montage", ante qualquer suporte, ante qualquer intrusão auxiliar no bem alheio: confiando que o apanhado, o imitado, pudesse ganhar muito provavelmente, no interior da composição, uma função independente, uma vida simbólica própria --e, assim, continuasse a existir intocado em seu lugar crítico originário.
Queria que o senhor pudesse partilhar dessa opinião. De fato, o senhor deu a mim, cuja formação mal chegou a ir além do romantismo tardio, o conceito da música mais moderna, do qual carecia para um livro que tem por objeto, entre outros, e junto com vários outros, a situação da arte. Minha ignorância "iniciada" precisava, não diferentemente do que no tipo do pequeno Hanno, de precisões, e agora é questão de amabilidade sua intervir, corrigindo, onde essas precisões, que servem à ilusão e à composição (e que eu não devo exclusivamente ao senhor), resultam oblíquas, equívocas, incitando o riso do especialista.
Uma passagem já passou pela prova do especialista. Li para Bruno Walter os trechos acerca do "opus 111". Ele estava entusiasmado. "Ora, é esplêndido! Nunca se disse algo melhor sobre Beethoven! Não tinha idéia de que o senhor estaria tão embrenhado nele!" E eu nem sequer quis colocar de maneira demasiado rigorosa o especialista como único juiz. Justamente o especialista de música, sempre muito orgulhoso de sua ciência oculta, está para mim disposto, um tanto facilmente, ao riso superior. Com cautela e "cum grano salis", poder-se-ia dizer que algo soaria, pareceria correto, sem precisamente ser bem assim. Mas eu não quero fazer boa impressão com o senhor.
O romance está a tal ponto avançado que Leverkühn, com 35 anos, compõe em tempo sinistramente breve, sob uma primeira onda de inspiração eufórica, sua obra-prima, ou a primeira obra-prima, a "Apocalipsis cum Figuris", em conformidade com as 15 folhas de Dürer ou também em conformidade direta com o texto da revelação. Aqui uma obra (que penso como um produto muito alemão, como oratório, com orquestra, coros, solos, um narrador) deve ser imaginada, realizada, caracterizada com alguma força sugestiva, e eu escrevo essa carta, na verdade, para permanecer no assunto em que não me sinto ainda confiante. Aquilo de que necessito são algumas precisões caracterizantes, marcantes (passo com pouco), que dêem ao leitor um quadro plausível ou até convincente.
Queira o senhor refletir comigo sobre como a obra --eu me refiro à obra de Leverkühn_ mais ou menos teria de pôr-se em obra; o que o senhor faria se estivesse num pacto com o Diabo; dar-me-ia uma ou outra característica musical para fomentar a ilusão?
Penso em algo satânico e religioso, demoníaco e pio, ao mesmo tempo intimamente vinculado e soando criminoso, penso amiúde na arte do blasfemo e também em algo remontando ao primitivo e elementar (a lembrança de Kretzschmar Beissl); além disso, algo praticamente difícil de executar: tonalidades eclesiásticas, coros de capela, que devem ser cantados em afinação não-temperada, de sorte que quase nenhum som isolado ou intervalo ocorra no piano em geral etc. Mas "etc." é fácil dizer.
Enquanto eu escrevia essas linhas, descobri que nos veremos mais cedo do que pensava, que um encontro já foi acertado para quarta-feira à tarde. Ora, assim eu lhe poderia ter dito tudo isso de viva voz! Mas é bom também para sua conveniência e meu sossego que o senhor o tenha em mãos, preto no branco. Nossa conversa, dentro em pouco, pode adiantar o trabalho, e, se há uma posteridade, então é algo para ela.
Seu devotado
Tradução de Luiz Repa
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