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30. Quase Memória

Ernesto Cony é metáfora do Brasil

(publicado em 27/09/1995)

MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas

É muito bonito o livro de Carlos Heitor Cony, "Quase Memória", lançado há pouco pela Companhia das Letras. Sou fã das crônicas que ele escreve diariamente para a Folha, e não invejo seu trabalho. A crônica diária exige muitas coisas ao mesmo tempo: saber criar assuntos, saber misturar a memória com o fato cotidiano, saber usar o próprio mau humor.

Sempre tive a impressão de que Cony era um sujeito ranzinza e solitário. Não é verdade. Mas todo mundo se torna ranzinza e solitário quando está na função de cronista, diante de uma máquina de escrever.

Além disso, a crônica termina valorizando, pelo próprio fato de se repetir dia após dia, as implicâncias, as obsessões de quem a faz. Novidades, assuntos saborosos não adiantam; o cronista pode explorá-los, mas sempre há de voltar a suas idiossincrasias, a seus fantasmas.

O cronista é um obsessivo: a famosa frase de Nelson Rodrigues --"sou um monstro de obsessão"-- e suas metáforas recorrentes --"um mau tempo de último ato do Rigoletto"-- são tanto expressões de sua personalidade quanto imposições do gênero.

Voltaire de Souza, cronista do jornal "Notícias Populares" que acaba de editar sua coletânea "Vida Bandida" (ed. Escuta), nunca descreve uma mulher atraente sem dizer "Seios de poema. Cabelo tipo samambaia. De certo modo, a forma mecaniciza o cronista; ajuda sua identificação pelo leitor.

Otto Lara Rezende, que antecedeu Cony na coluna "Rio de Janeiro" da página 2 da Folha, era maníaco pelos palíndromos (Roma = Amor) e pelos jogos de palavras em geral.

Confesso que a popularidade de Otto Lara Rezende como cronista me irritava um pouco. O conversador extremado, quase louco, inesquecível que ele era se apagava, a meu ver, no texto escrito. Otto Lara Rezende era mais vazio impresso do que ao vivo. E, mesmo ao vivo, ocorria um fenômeno estranho.

Ele era capaz de frases memoráveis, de descrições definitivas, de exageros trovejantes; nas reuniões do Conselho Editorial, eu o ouvia fascinado. Meia hora depois, querendo reproduzir as frases dele, percebia ter esquecido de tudo.

Diziam isso de Paula Ney --ou melhor, meu pai me contou que diziam isso: "O dissipador de gênio. Quer dizer, era um gênio que dissipava genialidades na conversa, pródigo de idéias.

Carlos Heitor Cony é um caso diferente. Lendo suas crônicas, tenho certeza de que se trata de um monstro literário. É genial, mas não está convencido disso. É um louco. Mas assim como Otto Lara Rezende escrevia como um louco sem ser (aparentemente) louco, Cony escreve como se não fosse louco. É um poeta que se reprime da loucura que há em ser poeta.

Daí, talvez, o mau humor que há em suas crônicas; e o seu esforço em ser obsessivo como um cronista qualquer, quando ele é maior que suas obsessões.

"Quase Memória" conta basicamente as loucuras de Ernesto Cony Filho, pai de Carlos Heitor. O livro é uma lição de afeto póstumo, de delicadeza, de simpatia. Assunto difícil, esse de falar sobre o próprio pai. As tentações sentimentais, os lances patéticos, as culpas e ressentimentos mútuos podem aflorar com facilidade.

Carlos Heitor Cony conta histórias divertidas, fascinantes, poéticas, sem nunca exagerar na dose. Aos olhos contemporâneos, o pai dele seria ridículo, mitômano, mentiroso, fracassado --numa gravata Lavallière (aquela dos pintores do século 19), contando feitos de uma viagem a Roma que ele nunca fez; bravateando coragens, com faca de churrasco em punho, contra os fascistas de 64; enfrentando jacarés que ele próprio criou numa represa; criando galinhas e depois desistindo da empresa.

Talvez tudo, na vida do pai de Cony, tenha sido um fracasso, tenha sido um vexame. Mas é com extremo amor, e com extrema graça, que Cony filho conta os gloriosos desastres dessa vida. Cada papelão fortalece a imagem de herói. O autor se incumbe assim de um extremo esforço, que é o de não tornar patético seu personagem; a leveza do cronista se reveste de uma emoção imparcial.

"Quase Memória" é um livro comovente; chorei bastante ao terminá-lo. Mas chorar é um ato suspeito moralmente. É antiestético. Diga-se, em favor do livro, que não faz nenhuma exploração barata das emoções que um pai desperta num filho.

Carlos Heitor Cony rememora todos os grandes lances da vida de seu pai, evidenciando o que tinham de imaginário, de fabuloso. Era um pai de mentira, totalmente alienado do mundo real, um "pai poeta", como a poucos é dado o privilégio de ter um.

Fazia balões como ninguém. Ruy Castro tem razão, na contracapa do livro, ao dizer que a cena do balão que volta à casa dos Cony --balão que fora feito pelo pai e numa noite de junho retorna, silencioso e cheio, colorido e casual ao lugar de nascimento-- está entre as páginas mais bonitas da literatura brasileira. Esse balão é uma espécie de filho pródigo, como Cony, como todos nós, quando nos lembramos do pai.

Uma das coisas mais espantosas, em "Quase Memória", é o quanto a vida no Rio era amena, doce, suportável para a classe média. Um país de favorecimentos, de arranjos, de suaves mentiras, algo parado e morno, movido a clichês jornalísticos e a preguiça de funcionários público, ia muito bem, obrigado.

Junto a isso, havia os lances épicos da retórica, da imaginação, da poesia. Burocratas modestos fantasiavam aventuras sensacionais. Cony conta de seu pai que era o tipo do homem que, indo dormir, dizia para si mesmo: "amanhã farei grandes coisas".

E ele fazia, ou pensava fazer.

Nesse sentido, talvez Cony pai sirva como uma metáfora do Brasil: sempre esperando muito de si mesmo, sempre se enganando a esse respeito, mas sempre incapaz de trocar um benefício imediato pela graça, pela delicadeza, pelo delírio que ele próprio sabe ser falso, pela grandeza de um gesto inútil, pelo teatro modesto que há em ser brasileiro, fracassado mas completo e feliz na vida.

Por toda parte no livro está a miragem de uma felicidade agora inatingível, a felicidade de um Brasil que sonhava com grandes coisas mas se contentava com um varejo de fantasias e acomodações.

O herói derrotado, o ídolo desfrutável e capaz de absorver toda derrota como se fosse vitória, o imaginoso pai de Carlos Heitor Cony é o Brasil; um Brasil desaparecido sobre o qual Cony se volta com afeto e descrença, sem nenhum senso do patético, com uma espécie de humor desconsolado e um distanciamento sutil.

"Amanhã farei grandes coisas": era isto o que o pai de Cony dizia para si mesmo toda noite. O Brasil já se disse muitas vezes essa frase. Cony parece dizer-nos que o momento de dizer isso já passou e que agora pagamos o preço de nossa falta de ingenuidade, de poesia, de sentido épico do mundo. Por isso mesmo, Cony escreve um "quase-romance, uma "quase memória: não há romance possível.

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