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30. Quase Memória

O país da grande véspera

(publicado em 19/11/1995)

O escritor Carlos Heitor Cony fala sobre seu novo livro e diz que o Brasil nunca produziu fatos históricos

MARCELO COELHO
Da Equipe de Articulistas

Carlos Heitor Cony recebeu a Folha na sede da Rede Manchete, no Rio. Seu escritório pertence ao antigo apartamento de Juscelino Kubitschek, de quem foi biógrafo e "ghost-writer". Jornalista e escritor, nasceu no Rio de Janeiro em 1926. Trabalhou no "Correio da Manhã", tendo sido um dos primeiros a protestar, na imprensa, contra as prisões arbitrárias nos primeiros dias do regime militar. Passou três meses na prisão, lendo Proust.

Por muito tempo malvisto tanto pela direita quanto pela esquerda, passou a acumular as funções executivas e jornalísticas na Rede Manchete com a coluna "Rio de Janeiro", na pág. 1-2 da Folha, a partir de 1993. Publicou este ano, pela Companhia das Letras, "Quase Memória", em que evoca a figura de seu pai, o também jornalista Ernesto Cony Filho, num misto de crônica, reportagem e romance (leia crítica à pág. 5-13).

Seu romance anterior, "Pilatos", é de 1974. Numa fala rápida, agitada, Cony narrou nesta entrevista suas experiências em 1964, sua formação num seminário católico e seus contatos com JK, além de comentar a literatura brasileira e as transformações do jornalismo.

Folha - Seu livro se chama "Quase Memória" e se autodefine como um "quase-romance". Por que não fazer um romance "por inteiro"?

Carlos Heitor Cony - Eu tinha prometido a mim mesmo parar depois de meu nono romance ("Pilatos", de 1972). Se eu começasse a escrever "Quase Memória" já com a intenção de fazer um romance, talvez não o fizesse. Comecei a trabalhar como se fosse uma crônica de 33 linhas para a Folha, depois quis estender um pouco, pensando que podia fazer um conto, e depois também a coisa passou dos limites do conto.

Folha - E a idéia de um romance tradicional, linear, parece ter-se esgotado.

Cony - O gênero romance partia de uma ação, seguia um esquema em que o fundo era o mesmo do teatro clássico grego, o da apresentação, do conflito, da resolução, como numa tragédia em três atos. Mas Proust conseguiu abolir o romance como gênero. Fez uma narrativa que tem um começo, meio e fim, que acompanha toda uma época, que tem sobretudo uma preocupação em expor um ponto de vista do homem face ao próprio homem e ao universo... mas sem pagar aquele tributo teatral ao romance do conflito e da resolução.

Folha - Como fica a questão do romance, e da literatura, no ambiente brasileiro?

Cony - Bem, os livros brasileiros podem até ser traduzidos no exterior, podem dar uma idéia geral de um país a ser mostrado para os outros, mas nossa literatura será sempre vista como uma produção de exóticos, como uma coisa da Papua, do Quênia. Eu acho que a grande literatura só existe, só se realiza, quando é expressão de um fato cultural, de um fato histórico, e o Brasil até hoje não produziu fatos históricos. O único fato que o Brasil produziu foi a descoberta, na qual ele entrou passivamente.

Folha - Um fato histórico de interesse universal, então, estaria faltando para que nossa literatura tivesse dimensão universal também...

Cony - Temos Machado de Assis, Drummond, Gregório de Matos, Manuel Bandeira, cada um pode ter seus autores prediletos. Mas a gente poderia dizer, como na Grécia, que eles estão numa situação semelhante aos pré-socráticos, os precursores, filósofos de um tempo em que a Grécia ainda não era a Grécia, mas um arquipélago de tendências, de influências. Só foram reconhecidos, ressuscitados, depois de a Grécia ter produzido história.

Folha - Seu livro cobre um período de 30 anos de história, do fim da República Velha ao fim do governo João Goulart, em que, apesar da turbulência política, sente-se que houve grandes oportunidades perdidas. Lembra a frase que seu pai, no livro, sempre repetia, "amanhã farei grandes coisas".

Cony - O Brasil sempre viveu a véspera do absurdo. O Brasil sempre é uma grande véspera. O fato mais importante dessa grande véspera foi a noite que antecedeu a final da Copa do Mundo de 50, quando nós fomos dormir campeões do mundo e acordamos os últimos do mundo.

Folha - E a morte de Getúlio Vargas?

Cony - Ficou um vazio muito grande também, porque o Getúlio de certa forma era um doente nosso. Gostando ou não do Getúlio, era como se ele fosse um objeto doméstico nosso, um cachorro, um vaso que vinha de várias gerações. De repente, acabou aquilo, houve um vazio, um silêncio. De modo que o Brasil, ou o Brasil que me interessa, que foi o da minha infância e da minha maturidade, era um país em que as grandes coisas sempre foram remetidas para o futuro, para o amanhã. O que mantém o Brasil de pé é ainda essa capacidade de dizer "bom, hoje não foi, mas amanhã será".

Folha - E antes de 1964 parecia estar havendo uma outra grande véspera.

Cony - Era a véspera em que íamos ter uma reforma agrária. Falava-se até --mas pessoalmente eu não era tão politizado a esse ponto-- em abolir a propriedade privada no campo para fazer uma reforma agrária radical. Estávamos na véspera de uma grande mudança, talvez com uma revolução sindicalista, o que seria desastroso...

Folha - Você não tinha nenhuma militância política?

Cony - Não, nunca consegui me dobrar ao prato dos políticos. Eu olho a política academicamente, e até um pouco distraidamente. A política me distrai quando não me irrita.

Folha - Antes de 1964, preparava-se um espetáculo...

Cony - E o cenário desabou. Eu escrevia uma coluna no "Correio da Manhã" e era considerado um cronista muito alienado. Mais alienado do que eu só o Ibrahim Sued. Eu não tinha nenhum interesse em participar da esquerda. Eu tinha sido operado de apendicite e estava escrevendo uma série de artigos sobre Machado de Assis. Mas daí aconteceu o seguinte. Eu telefonava para a minha editora (a editora Civilização Brasileira), e estava todo mundo preso. Meu médico foi preso. Eu ia pegar os meus direitos autorais na editora, o tesoureiro, que era primo do Fernando Henrique, o Joaquim Inácio Cardoso, estava foragido na Bolívia. Eu falei: "O que está acontecendo? Está mexendo demais comigo, o meu cotidiano está aviltado". Aí eu comecei a escrever contra o regime militar.

Folha - Em 1967, você escreveu um romance sobre a crise política, "Pessach - A Travessia".

Cony - E eu colocava o Partido Comunista como vilão da história. Tratava da questão da guerrilha, colocando a possibilidade não de êxito, mas de luta. No meu livro, o PC trai a guerrilha --não traiu na realidade, mas no livro trai, para ganhar vantagens no governo.

Folha - E como você foi preso?

Cony - Eu não fui preso, fui é sequestrado cinco vezes. Preso, condenado, eu fui uma vez, em que o ministro da Guerra, Costa e Silva, me processou pela Lei de Segurança Nacional. A LSN me daria 30 anos de cadeia, mas meu advogado, Nelson Hungria, conseguiu descaracterizar o meu processo, que correu pela Lei de Imprensa. Peguei uma pena de três meses.

Folha - E os "sequestros"?

Cony - No dia do AI-5, 13 de dezembro de 1968, todo mundo foi sequestrado. O camarada batia na porta e dizia: "Olha, tem um convite do general Sizeno Sarmento", comandante da região do Exército aqui. Nessa noite e no dia seguinte prenderam 300, 400 pessoas. O Juscelino Kubitschek estava numa formatura no Teatro Municipal, de smoking, foi a mesma coisa, um convite do general, e ele é claro não resistiu. Quando estava descendo as escadas, um major que estava atrás dele deu um pontapé, ele ficou com o tendão avariado até o fim da vida.

Folha - Você conviveu muito com Juscelino, foi biógrafo dele.

Cony - Ele despachava aqui, dormia aqui do lado, aqui a gente trabalhava no projeto das memórias dele. Eu não fiz as pesquisas, tinha uma equipe. Tínhamos pesquisa para uns seis volumes, publicamos só três.

Folha - Por quê?

Cony - Não havia licença para publicar. O Armando Falcão (ministro da Justiça no governo Geisel) não dava licença. O que consegui fazer foi uma edição da parte da infância, expurgada de alguns pontos polêmicos. A vida de JK ainda é inédita no Brasil.

Folha - Há uma imagem muito grandiloquente do Juscelino hoje em dia.

Cony - Foi construída pelas pessoas em volta dele, o Augusto Frederico Schmidt, o Josué Montello, uma imagem de heroísmo que ele absolutamente não tinha. JK até que seria próximo à personagem do meu pai, também, alguém das grandes vésperas. Mas criaram vários mitos para ele, o Schmidt dizendo que ele tinha de ser o maior homem da história do Brasil, os 50 anos em 5.

Folha - Em "Quase Memória" você fala também das mudanças do jornalismo, no estilo do jornalismo das décadas de 30, 40.

Cony - Não havia nem máquina de escrever nas redações. Era um jornalismo artesanal, ainda não havia o sistema americano, de dar destaque às perguntas e fatos essenciais. O rádio não tinha notícia, era praticamente lazer, de modo que o jornalista era como um árbitro, arbitrava o bem e o mal, era um Adão que dava o nome de todas as coisas. Esse poder o jornalista perdeu.

Folha - A personalidade de seu pai, com uma tendência para o fantasioso, para o grandioso, combinava bem com o estilo literário do jornalismo na época.

Cony - No tempo de meu pai o jornalismo era parnasiano. Nas fotos, meu pai posava sempre de perfil. O parnasianismo era uma praga. Anatole France era uma praga; não tem equivalente hoje em dia, só se referiam a ele como "o Velho".

Folha - E sua cultura literária foi uma reação a isso. O modernismo de 22 influenciou?

Cony - Tomei conhecimento de 22 já autor feito, com mais de 30 anos. Minha formação foi francesa e clássica. No seminário, eu estava impregnado de Cícero, Horácio, Tito Lívio, Virgílio. Minha tese de formatura em filosofia, no seminário, foi sobre um discurso de Cícero. Saí do seminário para cair de chofre na literatura do pós-guerra, os existencialistas, Sartre, Camus, Heidegger.

Folha - Você saiu do seminário por ter perdido a fé?

Cony - Não é perder a religião, porque eu sou muito fixado na beleza teatral da Igreja Católica, mas eu nunca acreditei em Deus. Nunca tive prazer místico nenhum.

Folha - Nem no seminário?

Cony - Não. Eu queria estudar porque achava bonito. As missas, as flores do altar, a música. Aos 12 anos, eu ouvia Bach, Vivaldi, Frescobaldi. Em geral, os depoimentos de ex-seminaristas são de ressentimento, de revolta contra os padres. Eu não tenho essa visão, devo ao seminário coisas maravilhosas...

Folha - Tanto a lembrança do catolicismo quanto o tom exagerado, a noção do ridículo que passa pelas histórias de seu pai, dão a "Quase Memória" um sabor muito italiano. Você gosta de Fellini?

Cony - Gosto muito, mas não é o diretor de minha predileção. Meu primeiro trabalho publicado foi um ensaio sobre Chaplin. Prefiro De Sica a Fellini, inclusive o sub-De Sica, o De Sica canastrão. Gosto muito de Pietro Germi, Dino Risi... e Mario Monicelli, lembro no livro um filme dele, "Os Eternos Desconhecidos" (1958).

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