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30. Quase Memória

A invenção do personagem

(publicado em 19/11/1995)

O livro é uma viagem de retorno ao que nunca existiu

ARTHUR NESTROVSKI
Especial para a Folha

É uma sensação estranha começar a leitura do novo romance de Carlos Heitor Cony num quarto do Hotel Novo Mundo, no Flamengo. Abro a primeira página e leio este parágrafo: "O dia: 28 de novembro de 1995. A hora: aproximadamente vinte, talvez quinze para a uma da tarde. O local: a recepção do Hotel Novo Mundo, aqui ao lado, no Flamengo".

Não existem coincidências, como afirma o personagem central do livro, e nada me parece mais justo do que a participação involuntária do crítico como quase-personagem deste "quase-romance", como o define Cony. Pois o trânsito entre o que é externo e o que é interno já é um dos temas de "Quase Memória". Ele está ligado à passagem, ou contaminação, de dois tempos e à recriação, pela memória, de um passado que nos traz até onde estamos, recriando, ou quase-lembrando, o passado.

Todas estas questões se cristalizam na relação com "o pai". Este "pai", Ernesto Cony Filho, está e não está entre aspas. Viveu no Rio, trabalhou na imprensa, deixou muitos amigos e conhecidos. Mas passa agora a habitar um outro mundo, da literatura. O pai, não por coincidência um Cony Filho, é agora, para todos nós, um personagem de seu quase-pai Cony.

É um personagem mesmo, como se diz, um tipo, um emblema do Rio. Irresistivelmente simpático, com suas milhares de invenções e esquemas, quase sempre frustrados, o pai foi "um camicase que doou a vida pelo objetivo de viver, viver tudo...". "Recebia um bom-dia como uma homenagem e "todo dia, ao dormir, pensava consigo mesmo: amanhã farei grandes coisas".

Capaz de tudo e realizador de quase nada, era o "homem sem rancor", o "homem-fronteira", o desbravador do maravilhoso, capaz até de fazer chegar ao filho, na recepção do Hotel Novo Mundo, dez anos depois de sua morte, um pacote impecavelmente bem amarrado, com a mesma "técnica" que só o pai tinha para tudo. O pacote fechado, que o filho hesita em abrir, é mais uma evidência da técnica do pai, no caso póstuma, em fazer de si mesmo e do filho duas personagens. Ou será que não?

Obedecendo à tradição dos melhores narradores, o pai "fazia do amigo de infância uma colagem de outros meninos que fora encontrando pela vida, e outros que ia inventando..." E este livro também, uma "quase-memória, ou um quase-romance, uma quase-biografia", vai multiplicando "cenas que costumam ir e vir da minha lembrança, lembrança que somada a outras nunca forma a memória do que eu fui ou do que outros foram para mim".

O texto inteiro é um anedotário do pai: o caso do perfume que explodiu na mão do capitão, o caso da romaria ao Traumaturgo de Urucânia, o caso do balão que voltou, o caso das mangas do cemitério, o caso do sogro que mostrou a bunda ao rei da Bélgica e tantos outros. Por meio das histórias, o que se relembra, também, é um outro Rio de Janeiro, que quase não existe mais, a cidade mitológica do meio-século, que a própria cidade guarda hoje de si como lembrança e ideal.

Dirigindo pela Barra da Tijuca, de madrugada, no final do livro, Cony, ainda sob o impacto daquela experiência iniciada no hall de um hotel, que não por acaso se chama Novo Mundo, vê-se a si mesmo "sozinho... sobrevivendo de um mundo que acabou". Há uma grande dose de nostalgia neste retrato de um anti-herói de outros tempos --maravilhosamente recapturada, diga-se de passagem, na capa de Victor Burton, misturando relato e ficção, com seu balão, seu 14-Bis e seu filhote de jacaré numa Copacabana sem prédios, num céu que é de dia e de noite.

O que o livro tem de mais sedutor, mas também de mais fácil, ou mais fraco está, contudo, precisamente nesta confiança na força das velhas imagens. Como um disco de choros, que nos comovem com seus bandolins e escalas cromáticas e harmonias quase-chopinianas, mas que ninguém consegue escutar do início ao fim, "Quase Memória" cativa e fatiga com seu bricabraque de amigos, idéias, façanhas e casos do pai. O livro, porém, tem outra história para contar.

Em seu prefácio, Cony deixa implícito que, 23 anos depois de seu último romance, "Pilatos" --e vale lembrar que, além desse, ele escreveu um número expressivo de livros que são um marco dessa geração, incluindo "Pessach - A Travessia" (1967) e "Informação ao Crucificado" (1961)-- ainda não tinha dito o que queria dizer. "Amanhã não farei mais essas coisas", resume, como se o livro pusesse, agora, um ponto final e definitivo na carreira. Mas o que está, de fato, fazendo nesse livro?

Entre os truques que o pai lhe legou, está o de se "autodefender de memórias devastadoras", e não seria injustificado ver nisto a definição do livro como autodefesa contra a devastação da memória do "pai"; vale dizer, um triunfante exorcismo, utilizando a memória "como cúmplice". "Eu sempre fora sua platéia preferida, ele se produzia, se fabricava para mim", escreve o autor. Mas a sensação agora é quase a oposta: na competição literária e humana travada amorosamente com o pai, é o filho, de fato, quem realiza as grandes coisas que o pai jamais realizou.

Em pequenos detalhes, incidentalmente, vamos aprendendo que, ao contrário do pai, que mentia para quase todos sobre a sua única viagem ao exterior, Cony viajou pelo mundo afora, em condições (reais ou inventadas) de luxo. Os indicadores de uma vida autenticamente confortável se dispersam pelo texto.

O pai manteve fielmente uma amante por muitos anos e acabou casando com ela depois da morte de sua primeira mulher; já o filho Cony deixa pingar na narrativa referências nada casuais à sua "primeira mulher", segunda, terceira e quarta. E Cony, afinal de contas, é o Carlos Heitor Cony conhecido nos quatro cantos do país, ao contrário do pai, se se pode dizer, "inconnu".

Um elemento especial nessa relação tão especial é o pacote que o pai escondeu do filho, certa ocasião, na sala de imprensa do Palácio, e que talvez seja este mesmo pacote fechado que Cony recebeu no hotel (ou vai receber, no dia 28 de novembro). Quem sabe não era este o "projeto muito especial" que o pai nunca mais mencionou? Seja como for, está implicitamente realizado, agora, na "Quase Memória", que o filho escreve com as histórias do pai. Amanhã o pai fará grandes coisas mesmo, porque continuará não as fazendo, gloriosamente e para sempre, nas páginas deste romance, no qual se deixa inventar pelo filho que se inventa por ele.

Daí, talvez, o senso de desconforto final do narrador. O livro é uma viagem de retorno ao que nunca existiu, exceto pelo afeto da retrospecção. É uma sabedoria esvaziada, um esforço de comunicação da experiência, ao mesmo tempo superior e inferior ao seu modelo. "A arte da narrativa está chegando ao fim", escreveu Walter Benjamin em 1936, mais ou menos na mesma época em que Ernesto Cony começava sua criação de galinhas e sua empreitada como instalador de antenas. Claramente, não era este o caso na cidade do Rio de Janeiro. Mas no mundo novo de 1995, o significado da narrativa começa a adquirir o mesmo caráter de ancestralidade a que se referia Benjamin.

Se o declínio da narrativa, do relato oral, corresponde, entre outras coisas, à ascensão do romance, então a terra-de-ninguém, o gênero incerto de "Quase Memória" parece, agora, uma expressão da palavra escrita que busca, ou retorna, ao reino da falada. A paternidade vai-se desdobrando, figurativamente, por estes labirintos. Não sei até que ponto o livro de Cony chega a dominar as ambiguidades dessa condição.

Em termos de gênero é um retorno à grande narrativa, como se a esta fosse quase possível, ainda, a percepção do sentido inexprimível de uma vida. Mas é também a biografia fictícia de si, pela vida do outro. É a biografia, ou vida, de um escritor, mais que de um mero pai.

A vida e a morte deste pai, nas páginas do livro, fazem de Cony um exemplo comovente do narrador estudado por Benjamin: "Seu romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque este destino, graças à chama que o consome, pode nos dar o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz o leitor é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro". Não é o narrador, porém, quem se consome na chama da história? E não antecipa com isso o destino do leitor?

Sobrevivendo de um mundo, ou de um livro que acabou, cada um de nós encantará, como puder, sua solidão. Há muitas formas de quase lembrar, ou reinventar, este lindo livro de Carlos Heitor Cony. Não poderia haver outra mais interessante do que a que ele mesmo não vai fazer, amanhã, na nossa quase memória, e nos seus livros.

ARTHUR NESTROVSKI é professor na pós-graduação em comunicação e semiótica e coordenador do Centro de Estudos da Cultura da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP)

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