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30. Quase Memória

O país que poderia ter sido

(publicado em 28/07/1996)

FERNANDO DE BARROS E SILVA
enviado especial ao Rio

Carlos Heitor Cony, 70, lança em agosto, na Bienal do Livro de São Paulo, "O Piano e a Orquestra" (Ed. Companhia das Letras), seu novo romance (leia trecho à pág. 5-6). Põe fim assim à decisão de não mais fazer literatura, promessa que fez a si mesmo há 21 anos, quando lançou "Pilatos" (1974), 11º romance de uma série iniciada em 58, com "O Ventre".

Embora o autor seja gato escaldado, seu novo livro sai cercado de expectativas, com um sabor talvez inesperado de desafio. Sobretudo para alguém que há duas semanas recebeu o Prêmio Machado de Assis, o mais importante da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra.

É que sobre "O Piano e a Orquestra" pesa o sucesso de "Quase Memória", publicado no ano passado, que Cony preferiu chamar apenas de "quase romance", um ajuste de contas com a figura do seu pai, levado a termo em linguagem híbrida, meio reportagem, meio crônica, meio ficção.

Em que se considere a distância que separa o exercício lírico, e até certo ponto descompromissado, do livro anterior da responsabilidade de assumir novamente a herança pesada da literatura, há um fio unindo os dois projetos.

O "quase" do livro anterior reaparece no romance, só que agora internalizado na trama, impregnando a prosa, cristalizado nos personagens. No conjunto, fica a impressão de um "quase Brasil", alegoria daquele país "que poderia ter sido mas não foi". A dedicatória do livro, "para o povo de Rodeio, que não existe mais e talvez nunca tenha existido", já aponta para essa nostalgia das coisas inconclusas, para o eterno pretérito.

Os pólos do romance são fixados pelas figuras do narrador e seu primo. O primeiro, nas palavras de Cony, "é um medroso, não assume a si mesmo, anda sem sair do lugar". O segundo é um desajustado de tudo e de todos, um piano que vai para um lado enquanto a orquestra vai para o outro.

Cony recebeu a Folha para falar do novo livro em sua sala, na sede da Rede Manchete, no Rio. Acabaram sendo duas horas de entrevista. Literatura, governo FHC, regime militar, o papel do intelectual e muitas outras histórias foram sendo costuradas por uma fala ao mesmo tempo macia e nervosa, uma consciência fluente e atuante, uma figura que a cada frase ia tornando presente uma antiga idéia de civilidade, hoje relegada ao baú das coisas extintas, ou quase.

Folha - Depois de um intervalo de 21 anos, acompanhado pela promessa de nunca mais fazer literatura, o sr. lançou no ano passado "Quase Memória", livro que mistura crônica, reportagem e romance. Como se costuma dizer por aí, foi um sucesso de crítica e público. Agora, menos de dois anos depois, surge "O Piano e a Orquestra", que não tem nada de "quase", é romance mesmo. O que alterou sua decisão anterior de calar o romancista Carlos Heitor Cony? O escritor traiu o homem?

Carlos Heitor Cony
- O homem não pode trair o escritor, mas o escritor deve sempre trair o homem. Quando ele assume a condição de escritor, ele deve ficar acima do homem. O ato de escrever fica sendo mais importante do que o homem. Eu passei 21 anos sem escrever. Preferi viver. A vida estava boa, divertida, foi uma fase em que não senti necessidade de escrever. Agora decidi escrever. E o escritor tem que vingar o homem. Até certo ponto, ele é não digo o anti-homem, mas o "a-homem". Queira ou não queira, ele tem que assumir um pouco a torre de marfim. Diante da página em branco, ele é um novo Adão. Ele vai dar ordem às coisas.

Folha - O filósofo francês Gaston Bachelard tem uma frase bonita sobre isso, "a obra do gênio é a antítese da vida".

Cony- É mais ou menos assim. Estamos todos mergulhados na vida, como uma azeitona no meio de uma grande empada. Quando a gente assume a empada, quando a gente quer ser artista, o adversário que a gente deve agredir é o homem. Por isso não dou nenhuma importância às promessas que faço enquanto homem, quando me transformo em escritor.

Folha - "Quase Memória" já vendeu quase 30 mil volumes. O sucesso foi decisivo nessa sua volta à literatura?

Cony- "Matéria de Memória", meu quinto romance, talvez tenha vendido mais do que este último. Tinha também a palavra memória no nome, coincidência. O que há é o seguinte: a repercussão crítica de "Quase Memória" foi muito melhor que a dos outros.

Folha - A que o sr. atribui isso? À conjuntura, a uma possível evolução da sua prosa?

Cony- Atribuo a uma carência afetiva do público. O livro é sentimental, acredito que não seja piegas. Atribuo também ao fato de o livro reavaliar a condição do pai na sociedade. O foco de luz mais favorável geralmente é jogado em cima da mãe em detrimento do pai. Isso foi truquezinho que eu usei e acho que deu retorno. Fiquei surpreso, de qualquer forma. Acho que o livro ocupa um lugar muito modesto, inclusive na minha produção. Qualquer pessoa formada em literatura percebe os saltos da narrativa e a oscilação da linguagem. Uso a linguagem chã, a linguagem objetiva da reportagem, a linguagem subjetiva da crônica e até certo ponto a linguagem fantástica do romance. Eu juntei essas três linguagens meio arbitrariamente e deu um todo. Mas eu me sinto como se estivesse vestido com uma calça de um terno, paletó de outro e sapato de um terceiro. Sinto-me não exatamente apalhaçado, mas arlequinizado.

Folha - Em "O Piano e a Orquestra" há algo da idéia do "quase" do livro anterior que permanece, não da mesma maneira, mas agora internalizada na prosa, no enredo, em alguns personagens. A idéia de que o Brasil é o país da grande véspera, como o sr. já disse em entrevista a Marcelo Coelho, a sensação de girar em falso, de algo sempre por cumprir --tudo isso reaparece neste romance. Faz sentido ou é delírio de jornalista atrás do fio da meada?

Cony- Faz, sim. O personagem central do livro, Francisco Rodano, quer sempre corrigir alguma coisa, ele está sempre desajustado, mas tem uma noção messiânica, mesmo às avessas. Ele é todo às avessas, um pouco como o Brasil. Já o narrador, o primo, é sobretudo um medroso, um grande covarde. Não assume nada, nem a si mesmo. O grande momento dele é quando vai para a roda gigante. Ele está em movimento, mas não sai do lugar.

Folha - Surgiu como o livro?

Cony- Eu tinha dois projetos armazenados na cabeça, sendo que um deles, o do Francisco Rodano, vem dos anos 60, quando o personagem que lhe inspira ainda estava vivo. O título deste livro seria "O Homem Que Não Tem Medo da Morte". O projeto adormeceu durante muito tempo. Nos anos 80, eu estava numa fase muito crítica em relação à ficção. Dirigia a teledramaturgia da Rede Manchete (entre 1985 e 1990). Nesse período eu tomei um enfado da ficção, sobretudo essa ficção que se destina a ser vestida por imagens. Nas horas vagas, no meio desse enfado, comecei a escrever o romance da vaca. O título seria "A Opinião da Vaca Sobre o Rio de Janeiro no Final do Século 20". Cheguei a fazer umas 80 laudas. Elas foram aproveitadas em "O Piano e a Orquestra", na segunda parte do romance.
Eu tinha então duas sementes, que apenas reguei e uni.

Folha - Francisco Rodano então existiu, obviamente não com este nome. Quem era a figura de quem o sr. decalcou o personagem?

Cony- Era um primo meu, primo muito afastado, talvez de sexto grau. Era um personagem muito rico. Não tinha cultura nenhuma, nada, sobretudo nenhuma cultura musical. Mas ele gostava muito de música. Tinha pavor de música popular. Só gostava de música clássica, mas não sabia diferenciar uma ópera de um concerto, nem um concerto de uma sonata. Eu colocava dez discos de dez autores na vitrola e ele ouvia aquilo como se fosse uma música só. Ele gostava disso. Ele de tal maneira se conflitou com a sociedade, que funcionou como um piano contra uma orquestra. Ele ia para um canto e a orquestra ia para o outro.

Folha - Como em "Quase Memória", o sr. parte de um dado real.

Cony- Neste, o que predomina é a ficção. O que eu tirei do Francisquinho... A verdade é que não há ficção pura. Nós falávamos antes de começar a entrevista sobre Dostoiévski. Ora, "Crime e Castigo" nasceu de uma notícia policial de jornal, um estudante que mata uma velha usurária. O livro obviamente não é policial, é uma grande, imensa pesquisa sobre a consciência do homem. O "Dom Quixote", tido como a primeira novela moderna, é uma paródia de um cancioneiro existente. No mais, não se pode esquecer a famosa frase de Flaubert, "Madame Bovary sou eu". Todos os personagens do romancista são o próprio romancista. Se a gente conhece o Jorge Amado, a preguiça dele, a ternura dele, a gente sente que Dona Flor, Teresa Batista, Gabriela são o Jorge Amado. O próprio James Joyce, que agora está bem biografado...

Folha - Pelo Richard Elmann, que também biografou Oscar Wilde...

Cony- Exatamente. Vemos que o "Ulisses" tem equivalente na vida do Joyce. Se os grandes escritores são "chupadores" da realidade, não vai ser um pobre subdesenvolvido que vai criar do nada.

Folha - A figura do diabo como encarnação do mal é recorrente na literatura. Para ficar só com dois exemplos próximos no tempo, basta citar "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, e "Doutor Fausto", de Thomas Mann. O personagem central de "O Piano e a Orquestra" também acredita que é o próprio capeta, mas parece que falta gravidade à figura do diabo, como se a metáfora do mal estivesse desprovida daquela carga metafísica.

Cony- No meu caso, você poderia dizer que se trata de um "Doutor Fausto" avacalhado.

Folha - Isso tem a ver com a experiência brasileira? Brás Cubas, Macunaíma...

Cony- Exatamente. Enquanto o alemão se leva a sério e produz "Doutor Fausto", enquanto a literatura russa pinta seus personagens com uma dramaticidade interior muito grande, os personagens brasileiros tendem à avacalhação, ao picaresco. É uma tradição ibérica. De forma geral, na literatura ibérica os camaradas, a começar por Dom Quixote, mudam mais do que as circunstâncias, ao contrário do que ocorre nos outros países, onde a ficção pede uma coerência dos personagens, eles permanecem mais ou menos os mesmos, o que muda são as condições materiais deles. Eles conflitam com realidades diferentes lutando para permanecerem os mesmos. Não foi à toa que na América Latina surgiu o realismo mágico, García Márquez etc.

Folha - Por falar nisso, ao iniciar a leitura de seu livro, tem-se a impressão de estar navegando nessas águas do realismo fantástico. A própria dedicatória remete a uma atmosfera que lembra a Macondo de "Cem Anos de Solidão".

Cony- Eu tenho muito medo de que este livro venha a ser enquadrado no realismo mágico. Eu nunca li García Márquez. Ele estourou justamente nesses anos em que eu estava lendo praticamente só biografia. Passei 23 anos lendo biografias, um pouco de filosofia, muita história, mas quase nenhuma literatura, descontadas as releituras. Nos últimos dez anos li "A Educação Sentimental" pelo menos uma vez por ano. Não desgrudo do meu flauberzinho.

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