30. Quase Memória
A vitória do troglodita típico
(publicado em 28/07/1996)
FERNANDO DE BARROS E SILVA enviado especial ao Rio
"O que é o executivo típico de hoje se não o perfeito troglodita?", pergunta-se Cony. "Ele tem computador, automóvel, celular, mas raciocina como o homem da caverna: sou o mais forte, o que você pode me dar". É com imagens assim que o escritor vai montando a sua visão da cena contemporânea. Sobre os paulistas, diz que estão hoje desgarrados do país, isolados da nacionalidade, como uma locomotiva sem seus vagões.
Folha - Se a gente sobrevoa a literatura brasileira de 20 ou 30 anos para cá, a primeira sensação é de uma certa rarefação tanto criativa como intelectual, embora tenham aparecido talentos indiscutíveis. Parece que falta fôlego à literatura atual. O sr. concorda? Como explicar isso? Parece que a questão é estrutural, ultrapassa a produção de cada escritor.
Cony - Eu comecei a escrever em 58. No finalzinho dos anos 50, saíram "Grande Sertão: Veredas", do Guimarães Rosa, "O Encontro Marcado", do Fernando Sabino, e "Gabriela", do Jorge Amado. Já nos anos 60 o negócio começou mesmo a ficar rarefeito. Não tivemos nada parecido com o ciclo do romance nordestino dos anos 30, quando em dez anos apareceram todo o José Lins do Rêgo, todo o Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz etc. Eu acho que a literatura anda meio rarefeita, mas não só aqui. A grande literatura francesa está rarefeita, a norte-americana produz best seller, muita coisinha pequena, mas nada de impacto. Como um todo, o romance está rarefeito. Está exausto? Acredito que sim. Por quê? Simultaneamente à crise espiritual, existencial do romance, surgiu uma alternativa, um novo veículo de expressão, que foi primeiro o cinema e depois a televisão. O que isso traga de talentos é um colosso. Hoje, quem faz os melhores roteiros devem ser aqueles que com 20 anos queriam ser um novo Balzac. De repente, estão fazendo "Robocop". Agora, se houver um grande romance hoje, quem o lerá? Se algum de nós for um novo Proust, quem lerá? Digo até mais, quem o editará? Não há nada que irrite mais o autor do que o camarada que lê seu livro e diz: "Isso dá um bom filme". Isso mostra que nós somos apenas fabricantes de matéria-prima para outro veículo.
Folha - O sr. tem fama de escrever suas colunas na Folha muito rapidamente. Com a literatura também é assim?
Cony - Com as crônicas da Folha, o difícil é achar o assunto. Uma vez escolhido, a coisa sai em cinco minutos, não mais. Na literatura também sou rápido. "Quase Memória" saiu em 21 dias, "O Piano e a Orquestra" em três meses. Nisso entra o computador. Como eu reescrevo muito, acabei ficando com preguiça da máquina de escrever. Ainda bem que só peguei o computador agora. Se tivesse isso à disposição há 50 anos, não teria 12, mas 60, 100 livros, como o Josué Montello.
Folha - A sua coluna na Folha, embora se caracterize por uma diversidade de assuntos muito grande, destoando das demais, que acompanham o dia-a-dia institucional da política, quando entra na seara do governo FHC é sempre para pisar-lhe o pescoço.
Cony - Acho que a obrigação do intelectual é contestar o poder, seja qual for o poder. Agora, quando se trata de política, eu tendo mesmo ao panfleto. Eu não tenho muita complacência nem paciência com política. Não sou light.
Folha - Qualquer governo teria a sua crítica?
Cony - Vai para o governo quem quer. Se o camarada escolhe isso, é para cobrar. Estou pagando você para me distrair, e você me faz chorar, eu te vaio. Bastante banalmente, é assim que eu vejo o fato político. Ganhei agora o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, R$ 20 mil. Pois bem, o governo me tirou quase R$ 5.000 em impostos, isso para sustentar uma máquina que não me satisfaz. Por que eu seria condescendente com ela? Se eles me liberassem de pagar impostos, anulassem meu CPF, tudo bem, não reclamaria mais.
Folha - Mas calma lá. O esbulhado que não ganha nem para comer também tem o direito de reclamar. Ou não?
Cony - Claro. Eu estava dando o argumento capitalista. Se você pensar no argumento socialista, a coisa muda. Eu não acredito que o socialismo tenha acabado. Pelo contrário, o socialismo é a utopia que sustenta a sociedade. O dia que acabar a utopia socialista, nós voltaremos a viver numa caverna luxuosa, habitaremos uma caverna com luz néon e ar-condicionado. Será a vitória do troglodita típico. O que é, aliás, o grande executivo de hoje se não o perfeito troglodita? Ele tem computador, ar-refrigerado, automóvel, celular, mas a cabeça dele é a do troglodita. Ele raciocina como o homem da caverna: sou o mais forte, o que você pode me dar, o que eu posso te arrancar, o homem caça, a mulher cozinha --enfim, o ritual é do homem da caverna, o que mudou foi o instrumental.
Folha - Trogloditas à parte, voltemos ao governo. O que mais o incomoda na atual gestão, uma certa arrogância paulista ou uma certa prepotência pefelista?
Cony - Não, não, acho que mais do que isso. Quando eles começam a falar em equilíbrio das finanças, eu saio de baixo. Isso é uma perversidade. Se você olhar o discurso dos economistas do governo, eles tratam o Estado como se fosse empresa. Dizem que esse Estado fabuloso, saudável, lucrativo, enxuto, o diabo, esse Estado irá repartir a riqueza ou distribuir seus farelos entre todos. A gente sabe que isso é mentira. Além do mais, o Fernando Henrique é muito acaciano para meu gosto. Ele é bem-humorado, articulado, mas profundamente acaciano. É capaz de falar meia hora sobre a inconveniência de se cuspir no chão, de se pisar na grama. Eu não entendo como São Paulo respeita tanto certos intelectuais paulistas. É claro que não estou fazendo um discurso contra São Paulo. Há Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Oswald de Andrade, Mário de Andrade.
Folha - Dá para falar um pouco sobre isso?
Cony - Há uma não-concordância entre São Paulo e a cultura brasileira, parecem estar desvinculados, para o bem e para o mal. O Rio é mais nacional. A mixórdia que é o Rio, o pântano que é o Rio, a bala perdida que existe no Rio é mais nacional, é mais tão Brasil, como dizia o Manuel Bandeira. "Macunaíma" é uma obra-prima, mas é um fato isolado. O Rio é mais nacional na medida em que tem mais os defeitos da nacionalidade. São Paulo criou a oligarquia do café lá atrás, depois veio a oligarquia industrial, e hoje temos as oligarquias política e financeira. Isso coloca São Paulo em condição de superioridade, mas também de isolamento. É uma locomotiva sem vagão.
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