Folha Online
Biblioteca Folha
30. Quase Memória

Escritor merece onda de reedições de sua obra recente

(publicado em 14/03/1997)

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Carlos Heitor Cony merece a onda de reedições de seus livros antigos e a audiência que suas obras recentes têm obtido. Essa afirmação pode parecer presunçosa, vinda de um modesto resenhista, mas ela, além de ser a confissão talvez lamentável de uma surpresa, faz as vezes de um apelo geracional.

O Cony romancista, autor de prestígio nas décadas de 60 e 70, permaneceu simplesmente ignorado pela imensa maioria dos leitores de ficção que beiram hoje os 35/40 anos, e quem perdeu, sem dúvida, fomos nós.

Claro que o próprio Cony tem responsabilidade nisso, pois deliberadamente se ausentou da literatura por 20 anos, limitando-se ao jornalismo. Também atuaram aí as famigeradas patrulhas de todo lado.

O fato é que quem tivesse procurado sua obra, onde quer que fosse, teria ganho tempo: lê-la é essencial para conhecer uma das componentes mais interessantes da literatura brasileira nesta segunda metade de século --o autor que um ensaísta tão criterioso como Otto Maria Carpeaux considerava o principal representante do neo-realismo em nosso país.

Tudo isso para situar a dimensão de "Pessach: A Travessia", livro que, na opinião de Antonio Callado, é um divisor de águas na obra e na vida de Carlos Heitor Cony. Trata-se, ainda nas palavras do também jornalista e escritor, morto recentemente, do "primeiro livro do autor engajado na luta revolucionária de seu tempo".

O enredo de "Pessach" é relativamente simples e se divide em duas partes.

Primeira: no dia de seu quadragésimo aniversário, o escritor profissional Paulo Simões, homem cético e bilioso, às voltas com seus problemas pessoais, visita a filha no colégio interno; passa na casa da ex-mulher; dá um pulo para ver os pais; e ainda trata de assuntos seus na editora. Terá também recebido logo cedo a visita indesejada de uma amante e o convite, em princípio ainda mais indesejado, de um velho amigo a que se engaje na "luta armada" contra a ditadura militar.

A segunda parte narra o citado engajamento, efetuado a contragosto pelo protagonista, mas com uma imposição de comportamento que só um mestre na narrativa, como Cony, saberia tornar natural aos olhos do leitor.

"Não gosto do governo atual, mas jamais gostei de governo algum. Politicamente, sou anarquista, mas sobretudo sou comodista", define-se Simões.

O título da obra alude a um episódio bíblico --a fuga do Egito e a travessia do deserto empreendida pelos hebreus sob a liderança de Moisés em direção à Terra Prometida--, mas é também o nome de um romance que Paulo Simões se propusera a escrever. Ao final, convertido o escritor Simões à necessidade de "assumir a luta", sua obra parece esvair-se, mas é quando justamente o homem Simões começa a sua real travessia.

Na "orelha" da edição de 67, Leandro Konder afirma que "a primeira parte (do livro) pode ser incluída entre as melhores páginas da ficção brasileira de todos os tempos". Na segunda parte, porém, para Konder, Cony abandona o "pequeno mundo" privado e "experimenta passar a um plano mais amplamente épico"; e essa diferença, conquanto possa dever-se, como diz, a um "imperativo ético" louvável, teria acarretado "certo prejuízo estético para a unidade, o equilíbrio da obra".

A afirmação é interessante, mas merece reparos: mesmo engajado, Simões age mais como observador indigno do que como revolucionário; questiona tudo em seus novos companheiros; remoe-se continuamente.

E, não por acaso, uma das cenas mais impressionantes de "Pessach", a do sexo forçado ocorrido no campo de treinamento de guerrilha, remete ao "mundo privado", em que pese o simbolismo que ela possa ter por se dar em um coletivo de pessoa.

O predomínio desse lado pequeno-burguês, individual, num universo mais amplo, a força desse conflito a longo prazo insolúvel para Cony, justamente isso é que faz com que "Pessach" não seja --embora 30 anos depois de redigido, e tendo sido colado a uma problemática de seu tempo--, de modo algum, um livro datado.

Ressalte-se ainda, neste romance, a permanência de traços estilísticos que marcam todas as obras do autor. O uso do presente na voz narrativa, o parágrafo nervoso, de períodos curtos, a agilidade na justaposição de diálogos e cenários, e principalmente o humor, raro, mas de uma crueldade inimaginável em um ex-seminarista, como Cony inegavelmente o é.

Diz o brasilianista americano Malcolm Silverman em "Protesto e o Novo Romance Brasileiro" (UFRGS e UFScar, 1995): "Para Cony, o Homo brasiliensis é, invariavelmente, uma fera solitária, confusa e em fuga, quer vista em isolamento ou imersa na massa urbana... O pequeno humor que existe tende a ser cáustico, isto é, cínico, sarcástico, mórbido e satírico".

Que venham novas reedições de Cony, para testarmos o nosso auto-retrato.

Livro da semana

Livro anterior

"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


Copyright Folha Online. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página
em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folha Online.