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30. Quase Memória

Leitura é dissecação

(publicado em 11/04/1998)

especial para a Folha

Cony é um autor que nasceu antes da era da auto-ajuda. Seus romances incomodam, assustam, desanimam e não levam ao conforto de livros de conselhos que afagam o espírito, a alma e a dor do leitorado, com verdades fáceis.

Ler "O Ventre" é como assistir a uma dissecação no Instituto Médico Legal. O autor é um perito que exibe, sem barroquismos, o que existe de pior na, como ele adora dizer, "condição humana". Seu narrador, José Severo, é um idiota. Ou melhor, é um zero, um inútil, um medíocre.

Nascido em uma família de pendor literário, cujo pai é fã de Machado de Assis, enquanto o padrinho prefere Eça de Queiroz, seu maior feito é ter lido um livro de Geografia. Ignorado pelos pais e pela bela vizinha Helena, Zé Severo leva a vida sem interferir. A vida o leva.

Em seu colégio interno, a vizinha, mulher de um capitão, com seu corpo redondo e inquieto, recebe visitas de uma lista de alunos. É a febre da adolescência sobre o lençol doce da adúltera. Zé é um deles.

É o único que a moça detesta, mas, como nós, leitores, se incomoda por tamanho vazio, e o chama para desvendá-lo. E Zé põe tudo a perder, ao esquecer seu casquete debaixo da cama da moça de valor nenhum.

Expulso de todas as escolas, vai dirigir um ônibus em Maceió (AL) e imagina o estrago que faria se, numa balançada no volante, fizesse um "strike" de pedestres.

É um sujeito sem ambições. Nem charme para a conquista tem. Sua namorada de Natal tem uma boca torta, enorme. Zé a beija depois de ela comer bichinhos de areia de mar. Beijo com gosto de bichos.

Cony escreveu um livro cujo narrador não sugere, opina ou modifica. É apenas um escravo dos acontecimentos, dos outros (seu inferno). É um alienado. "Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito", diz o narrador.

Presente, no livro, a semente do cronista irônico: "Não sou entendido em cromossomos. O que sei de genética é pouco mas divertido: está espalhado nos mictórios do mundo".

O mercado literário brasileiro é contaminado por febres e desvios. Na minha adolescência, Machado de Assis era considerado um escritor menor; tive um professor que dizia que Oswald de Andrade era o melhor escritor brasileiro.

Os livros estão lá, nas estantes, mas são abertos seguindo conjunturas culturais. Pode ser que daqui a dez anos, a auto-ajuda fique para as traças. Na minha adolescência, nunca tinha ouvido falar de Cony. Foi um autor apagado pelos patrulheiros do mercado.

Ficou 20 anos sem publicar. Agora, com o relançamento de "O Ventre", uma geração sem Cony pode se esbaldar. Divido a mesma opinião de seus amigos. É seu melhor romance.

Livro: O Ventre
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Companhia das Letras (tel. 011/866-0801)
Quanto: R$ 19 (200 pags.)

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Lançado: 21/12


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