30. Quase Memória
"Matéria de Memória" é retrato dos abandonados
(publicado em 30/01/1999)
MARCELO RUBENS PAIVA especial para a Folha
O escritor carioca Carlos Heitor Cony, 72, saiu em definitivo de seu auto-exílio hibernal de 23 anos.
Sua produção está vitalizada. De 1995 para cá, foram publicados os premiados "Quase Memória" (1995), "O Piano e a Orquestra" (1996), "A Casa do Poeta Trágico" (1997) e seu romance de estréia, "O Ventre" (1958), entre outras obras que estavam fora de catálogo.
Na virada do ano, em suas férias, Cony, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha, escreveu um romance em 11 dias, "Romance sem Palavras", a ser publicado em abril. É Cony ganhando os prêmios Jabuti, Nestlé e Machado de Assis. É Cony nas estantes das livrarias. E a constatação não é outra: está bem vivo um dos maiores romancistas da literatura contemporânea brasileira. E viva está sua memória, combustível de sua obra.
"Matéria de Memória", seu quinto romance, escrito em 1962, está sendo republicado. É um legítimo Cony, cuja obra não deveria ter títulos, mas números, já que seus livros parecem volumes de uma mesma coleção.
A matéria Cony flutua sobre uma só correnteza: a do niilismo. As relações são incompletas. Há, em "Matéria de Memória", rusgas aparentemente insolúveis entre os personagens. Há doenças contagiosas. Há um pai vetor que procura desenhar o futuro de seus filhos, mas é malsucedido. Há uma mãe ausente. Há um filho preterido pelo preferido. E há, lógico, muitos amores impossíveis. A morte está ao lado. A solidão é azul e enorme.
No Brasil, a ressaca da renúncia de Jânio Quadros. No mundo, o impasse da revolução cubana. Nas telas, Glauber e Godard. Na vitrola, "triste é viver na solidão..."
Os abandonados
"Matéria de Memória" é o romance dos abandonados, viúvos e traídos. São três os narradores, o pintor Tino, sua sogra, Selma, e o filho dela, João.
Tino estudou num internato. Perdeu a virgindade com um colega que seria uma mulher travesti (seria?). Seu pai morreu de lepra, e sua madrasta se casou com seu irmão. Tino se casou com Julinha, que também morreu. Selma, a sogra, torna-se sua obsessão.
Ele mora sozinho, em Copacabana. Não tem telefone. Contrata empregadas pagando o dobro do salário para que elas durmam com ele. Recebe um telegrama que avisa que Selma está para voltar. Pede a sua empregada que o tranque e leve a chave. Quer estar longe dessa doença, o amor.
Selma se parece com Greta Garbo. Ficou viúva jovem. Está no avião da Boac retornando ao Brasil. Conta sua história. Seu marido, ironia, foi atropelado pelo carro da embaixada do Ceilão. Sua filha, Julinha, morreu. Seu filho, João, está por aí.
Enquanto o avião sobrevoa a costa brasileira, ela recebe a cantada de um passageiro, André (o mesmo nome de seu ex-marido). Ele quer se casar com ela. Ela já teve um marido, 19 amantes e avisa: "Se ninguém estiver me esperando no aeroporto, caso-me com você".
João foi abandonado pela mulher (que "botou chifres" nele) e pela mãe. Virou um comunista. É um infeliz. Foi também avisado da chegada da mãe. Irá esperá-la, no aeroporto?
A trama está esparramada. Selma e Tino vivem um amor secreto, bloqueado pelas circunstâncias inadiáveis. Se encostaram uma única vez, ao lado do leito em que a filha dela (esposa dele) morria.
A tristeza é dissimulada pela apatia diante do destino. As regras foram impostas antecipadamente. A vida é sem sentido, já que a transformação é uma rocha densa, imóvel, impenetrável. "Matéria de Memória" é um Cony existencialista. É um romance completo. É de dar inveja a muitos escritores.
Livro: Matéria de Memória
Autor: Carlos Heitor Cony
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 19,50 (197 págs.)
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