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30. Quase Memória

11 dias em 73 anos

(publicado em 24/04/1999)

MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha

Para alguns, pode soar estranho um escritor do porte de Carlos Heitor Cony fazer um livro a pedido de seu editor, Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. A editora queria uma novidade de um dos autores que mais vendem de seu repertório para apresentar na 9ª Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro e no Salão Internacional do Livro de São Paulo.

Para muitos, o ofício de escrever é um dom de marginais românticos, doentes e desesperados, que com palavras compilam sonhos e pesadelos destrutivos. A vocação divina deve aflorar quando o poeta está no limite de sua inspiração.

Até parece... A maioria dos escritores trabalha com um olho na escrita e outro no mercado. E por que deveria ser diferente?

"Dublinenses", de James Joyce, é o resultado de uma encomenda de seu editor, George Russel, que queria um livro simples, curto, comum, para ampliar o leitorado do autor de "Ulisses".

Shakespeare, Dostoiévski e Balzac são alguns autores que escreveram sob encomenda, com prazos torturantes.

Espanto dois: dá para escrever um livro em alguns dias? Kerouac escreveu "Pé na Estrada" em um mês. Cony escreveu "Romance sem Palavras" em 11 dias. Levou 11 dias e 73 anos de vida para compor a história.

"Escrevo rápido. Termino logo para ficar livre do livro. Não fico castigando o estilo. Não sou como Flaubert, que ficava revirando, procurando a palavra justa. Glauber escreveu cenas de 'Terra em Transe' num papel higiênico, enquanto estava preso comigo. Callado também escreveu trechos de 'Quarup' na prisão. A idade e a experiência ajudam a traduzir o que quero dizer. Saiu fácil por causa do tema", conta Cony.

O tema, a rotina de militantes políticos dos anos 70, já foi explorado por outros escritores, biógrafos, jornalistas, testemunhas, militares e acadêmicos. O desânimo, a falta de sentido, a casualidade e o desencanto são peculiares. São os componentes constantes da obra de Cony em mais um Cony.

Irene, a personagem, não se chama Irene, e ninguém sabe seu nome verdadeiro. Leva dois homens de histórias diferentes à mesma militância e a se encontrarem, futuramente, na mesma cela de prisão. Beto cuida de Jorge Marcos, muito torturado. Jorge Marcos fica em dívida com Beto. E, como se não bastasse, leva a mulher de Beto, Irene. Mas Irene, Jorge Marcos desconfia, ainda ama Beto. Que trama...

Sem perder tempo com o estilo, procurando, em capítulos curtos, prender a atenção do leitor, Cony costura uma leitura amargurada sobre a época das opções, que deu na era dos faturamentos.

O contraste entre a militância, no passado, e conformismo dos novos tempos é o espelho das relações. Ou talvez o conformismo de hoje seja fruto, a imagem invertida, de uma militância sem fundamento. Uma história triste essa, a brasileira. (MRP)

Avaliação: Bom
Livro: Romance sem Palavras
Autor: Carlos Heitor Cony
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 17 (136 págs.)

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"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


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