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30. Quase Memória

A miséria do ciúme

(publicado em 20/06/1999)

"Romance sem Palavras", de Carlos Heitor Cony, traz a vida brasileira sob o período militar

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Quem não quer uma vida sem palavras? Ou sem a necessidade delas? Quem não quer o entendimento direto das coisas? Quem não quer um diálogo seja de amizade ou de amor conduzido nos tons imediatos do silêncio? E quem não está preso seja na amizade ou no amor às obliquidades e opacidades da fala? Quem não se perde na sua decifração? "Palavras, palavras, palavras": quem não quer um romance sem palavras? A interpretação dos livros, como a dos sonhos, é uma das tantas maneiras de multiplicar o que foi cifrado; e isso ainda é pouco, comparado à decifração do passado, ou pior, à decifração do passado num livro. Ou, pior ainda, à decifração de um amor do passado num livro. Amor, passado e livro se confundem no novo trabalho de Carlos Heitor Cony, "Romance sem Palavras". Descrito pelo autor como uma novela, seu tema é um romance, nos dois sentidos: romance de amor e romance literário, o romance que conta a história de um romance. Conta um romance de história, também, episódios da vida brasileira sob a ditadura militar.

Os dois "tempos" em que o livro se divide (como se fala de um jogo em dois tempos) deixam-se recortar e invadir por outros, os pequenos capítulos se sucedendo em decupagem rápida, saltando entre os anos como saltam de cena. Do presente em 1995, ponto de partida para as excursões pela memória do narrador Beto e ponto de chegada surpreendente no final do romance, a narrativa nos transporta, desde logo, para uma cela de prisioneiros políticos 20 anos antes. Foi lá que se deu o primeiro encontro entre Beto e "um troço de carne ferida" jogado a seus pés, o "enigma" Jorge Marcos, que se tornaria seu melhor amigo.

Que esse enigma faça parte de um triângulo amoroso e que o triângulo vá sendo enquadrado em novas geometrias afetivas ao longo do tempo é, acima de tudo, o que oferece ao autor a possibilidade de fiar sua narrativa. Visto de outra perspectiva, mais ambiciosa, o enredado das paixões é também, de modo indireto, uma forma de acompanhar a realidade inacessível daquele passado, um momento do Brasil que já parece tão distante. O caráter artificial dos nomes, desde a musa "Iracema", nome de guerrilheira, anagrama romântico de "América", até o igualmente romântico e anagramático "Raul", uma das "tantas reencarnações de Che" daquela época, e até mesmo "Beto", que pode ser hamletianamente invertido em "to be", num livro que cita Shakespeare mais de uma vez, reforça a condição de virtualidade desse livro tão voltado para o entendimento humano do que foi vivido.

O risco maior de Cony, aqui como em seus outros romances recentes, na sequência aplaudida de "Quase Memória" (1995), "O Piano e a Orquestra" (1996) e "A Casa do Poeta Trágico" (1997), é cortejar a sentimentalidade. Cada um desses livros resiste a ela como pode. As quebras e saltos da narrativa no "Romance sem Palavras" são uma forma de contrabalançar essas comoções, que não deveriam ser lidas como centro do livro, nem muito menos da experiência. Certa ênfase no coloquialismo tem o mesmo propósito de criar um contrapeso para as afetações de sentimento. Nesses momentos, a sabedoria literária de Cony fraqueja pela própria coragem: o naturalismo assumido de palavras como "cara" ou "sacanear" soa artificial. Cony é um encantador, não desencantador, de palavras; e sua mágica é tão mais simples e convincente quando faz de lugares como "Fonte da Saudade" ou "um dos prédios mais antigos de Higienópolis" nomes de sítios mitológicos, locais fantásticos onde se passa uma vida mais alta, mais intensa --uma vida, precisamente, da literatura.

Que o livro seja de natureza mais modesta que os anteriores não diminui seu grau de comprometimento. A busca de um sentido retrospectivo é uma paixão de toda essa "geração desperdiçada", observando agora, com desprezo, resignação ou contentamento, o país que poderia ter sido e o que se tem. Esses ex-guerrilheiros, hoje professores, advogados, investidores da bolsa, representam, uns para os outros, as imagens do que de mais forte se quis e se fez e do quanto sobrou --tão pouco-- de tanta paixão e tanto sacrifício.

A retrospecção é também um exercício espiritual dos amorosos, confrontados aqui e ali com os signos do passado, semelhantes àqueles "marcos antigos, cobertos de limo, que a gente encontra quando passeia... nos caminhos abandonados". A "perda da mulher que durante um verão e que, no clima exaltado que alimentava, esperava reencontrar para ser e para sempre" é o que move o narrador a recriar o acontecido. Isso para, quem sabe, chegar, afinal, ao que se passou. História e amor, no caso, têm um movimento análogo: ninguém, no livro, está inteiramente presente no presente. O presente só se revela depois --e pode trazer surpresas.

As pressões da narrativa constituem assim um modo de entrar na opacidade do mundo. Mas Cony é controlado e, no fundo, bem-humorado o suficiente para não acreditar de todo nessas iluminações. É Iracema, não Beto, quem anuncia que está escrevendo um "Romance sem Palavras"; e nada nos impede de ler o livro como obra dela, o que levaria a uma interpretação muito diferente do seu desenlace. São pelo menos dois romances, então, o que se vai ler. E há um terceiro, ainda: o romance verdadeiramente sem palavras, a história de um amor escondido atrás dos outros, aquilo que é "talvez, o maior sentido da vida", mas que, no caso, revela só a falta de sentido de tantas outras vidas vividas na ilusão e no erro.

Mais um romance sem palavras se adivinha, também, fora do livro, na sequência da história, que cada leitor há de imaginar como puder. O fingimento revela-se, no fim, como uma lei não só da ficção, mas da compreensão, e da compreensão de si em particular. A miséria do ciúme, epigrafada com frases de "Othello" e do "Inferno" de Dante, chegará então à apoteose ou ao zero, segundo o caráter ou a sorte de cada um.

Todos nós, portanto, assim como o narrador e seus colegas de trama, temos bom motivo para desejar o silêncio e a intuição completa. Ou então a música --a música sem palavras, um dos nossos mitos da vida interior. Mas a última palavra fica, naturalmente, por conta do autor. Nem Beto, nem Iracema, nem Raul, nem Jorge Marcos, mas ao mesmo tempo todos e nenhum, é ele quem vem mais uma vez exercer seu papel sagrado e humano de compor histórias e nos ensinar a ler romances, de palavras ou sem.

Arthur Nestrovski é professor titular de literatura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autor, entre outros, de "Ironias da Modernidade - Ensaios sobre Literatura e Música" (Ática).

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