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30. Quase Memória

Em busca da espiritualidade perdida

(publicado em 18/12/1999)

MARCELO COELHO
do Conselho Editorial

"Padres de um culto estrangeiro, vindo da Síria e da Palestina, cuidaram de me educar. Esses padres eram sábios e santos. Ensinaram-me as longas histórias de Cronos, que criou o mundo, e de seu filho, que fez (...) uma viagem pela terra."

É assim que Ernest Renan (1823-1892), ex-seminarista, inicia sua "oração diante da Acrópole", onde celebra o milagre da Razão e as luzes da Grécia, em contraponto à fantasia gótica do catolicismo, pela qual manifesta ternura e desencanto.

Carlos Heitor Cony não sofre das melancolias de Renan; é carioca, não nasceu "nas margens de um mar sombrio, eriçado de rochedos, sempre batido pelas tempestades, onde o sol mal se conhece, e as flores são os musgos marinhos, as algas e conchas coloridas que se encontram no fundo das baías solitárias", como declama o escritor bretão.

A melancolia romântica está, em geral, ausente das páginas de Cony; quando aparece, é mais na forma do mau humor. De certo modo, é como se a melancolia, o tédio, a tristeza mesmo, que o acometem de vez em quando, tivessem de ser exorcizadas. Os teólogos falam de um "demônio do meio-dia", que impõe, sob o sol a pino, em suas vítimas a sensação de que nada faz sentido.

Esta sensação está presente nas crônicas de Carlos Heitor Cony; é raro, entretanto, que Cony se deixe impregnar por ela. Ou surge a reação brusca, mal-humorada, como se o autor estivesse com raiva do sentimento que tem, ou, então, o absurdo, o sem-sentido, se transfigura em celebração.

É nisto que este autor brasileiríssimo tem muito, a meu ver, de Renan: não apenas pela biografia (foi seminarista, largou a batina, "Informação ao Crucificado" nos conta como), mas principalmente pelo que poderíamos chamar de senso do milagre; milagre ateu, milagre material, milagre feito de arbítrio e carne, mas milagre; milagre de uma literatura, sobretudo, que na coleção de crônicas intitulada, com certa derrisão, "O Harém das Bananeiras", manifesta-se em toda página.

Pode parecer cupinchagem; paciência. Mas este "O Harém das Bananeiras" é uma maravilha.

Nos encontros que tive com Cony, sempre me surpreendeu o arbítrio, o tom quase louco de seu senso de humor. Contou-me, por exemplo, das sessões de cinema que havia no seminário. Em geral, passavam filmes de Charles Chaplin. Mas uma vez, por engano, foi apresentado "O Gabinete do Dr. Calligari", obra de horror, em que o padre responsável pela projeção confundiu os diversos rolos da fita, tornando ainda mais confusa uma história que já era das mais confusas.

Cony diz que o filme teve diversos diretores --começa a rir--, sucessivamente encarregados de tornar inteligível a história do filme. Por fim, "O Gabinete do Dr. Calligari" foi assinado por Robert Wiene. E nesse momento Cony está rindo às gargalhadas: pois Robert Wiene é o único cineasta, diz, que tem seu nome nos créditos precedido de um "doutor". Doutor Robert Wiene, repete Cony, rindo sem parar.

O interlocutor, perplexo, não entenderá nada de Cony se não perceber que para ele o absurdo do mundo se resolve de forma cômica; o acaso, que tantos de nós queremos dissolver em certezas científicas ou dogmáticas, é para ele uma fonte de vida. Não há crônica de Cony que não manifeste o absurdo das coisas; absurdo que ele reproduz em finais súbitos, em associações arbitrárias, em gestos de mestre, como quem tirasse das costas o peso de viver.

Leia-se por exemplo a crônica em que, de repente, o falecido Moisés Weitman, criador da revista "Amiga", reaparece num bar em Paris, que Cony frequenta sem nenhuma razão, pois ali o café é péssimo e ele está hospedado num hotel nada perto; surge uma consideração sobre César Bórgia, sobre a "polidez quase ofensiva dos franceses", a história termina com um palavrão, e tudo, nessa crônica, transmite-nos a idéia de que a vida só vale a pena pelo fato de ser tão absurda.

Um diálogo marcante do romance "Informação ao Crucificado", mostra o narrador, seminarista em crise, respondendo às interrogações do arcebispo. "Afinal, por que você quis ser padre? --Quis, respondi sem resposta (...) Achei bonito ser padre. Bonito e difícil." O sem-sentido de uma decisão, que neste livro aparece como problema mais vocacional do que de fé, é como que comemorado nas crônicas, na vida do autor, onde tudo, como o filme de terror, vem com os rolos trocados, numa maluquice risível e muda.

A geração anterior à de Cony, nascido em 1926, foi marcada pelo ceticismo de Anatole France, pela apostasia de Renan; por um modelo de elegância estilística, de leveza boêmia que se pavoneava nas confeitarias cariocas.

Diante desse ceticismo fácil, Cony sofreu como ninguém a ausência da fé religiosa. Se a geração anterior à sua foi perturbada pela gentileza dissolvente de Anatole France, ei-lo, por volta dos vinte anos, enfrentando a amargura de Sartre e de Camus. Nestes autores, o absurdo ganha dimensões teológicas; confirma-se um ateísmo radical, que nada tem de leve ou sorridente.

É como se Cony tentasse, em suas crônicas, anular a experiência existencial desse absurdo, exorcizá-lo pela alegria de viver, encontrando a dimensão cômica da tragédia, ou do escuro pessimismo, em que ele vive.

Essa comicidade não tem nada de frívolo. Ao contrário, reconcilia o autor com a espiritualidade que ele perdeu. Trata-se de registrar, a cada dia, no absurdo, na coincidência, no arbítrio, no acaso, a ocorrência de um milagre. Há milagres em todas as páginas de Cony.

Livro: O Harém das Bananeiras
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 20,80 (270 págs.)
Avaliação: Ótimo

Livro: Informação ao Crucificado
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Cia. das Letras
Quanto: R$ 17,50 (108 págs.)
Avaliação: Ótimo

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