30. Quase Memória
Cony se entrega a fantasmas em "O Indigitado"
(publicado em 18/08/2001)
MARCELO COELHO colunista da Folha
LEMBRO-ME de ter visto, no escritório de Carlos Heitor Cony, duas reproduções de Goya: uma, da "fase negra" do pintor, retratava monstros, bruxas, personagens tomados de pânico. O outro quadro era gentil, ensolarado, com marquesas e lacaios trocando cortesias.
Cony apontou para a cena idílica, dizendo que aquilo correspondia ao mundo do cronista; e que, nos romances, tratava-se de desvelar horrores e pesadelos.
Estranhei um pouco, pois nem sempre as crônicas de Cony são amenas e sorridentes assim. Muitas vezes trazem um tom de melancolia e pessimismo; em outros momentos --e são estas as crônicas mais desconcertantes do autor-- parecem ser o resultado de algum impulso inexplicável, de um gesto repentino, de um tranco. É como se terminassem num movimento de raiva, ou melhor, num sobressalto --o de quem, despertando de um sonho ruim, vira-se na cama num misto de mau humor, desconforto e medo.
O lado sombrio, "goyesco" de Cony já está bem presente em suas crônicas; é comum que não sigam o modelo do entretenimento, do tom leve e descompromissado que se associa ao gênero.
Por sua vez, este livro de Cony tem tudo para ser lido como uma simples novela de entretenimento. "O Indigitado" faz parte de uma coleção intitulada "Cinco Dedos de Prosa". Cada livro dedica-se a um dos cinco dedos da mão; coube a Cony inventar uma história sobre o dedo indicador.
A idéia, no mínimo bizarra, deve ter agradado a Cony, que se lança a uma narrativa pródiga em elementos folhetinescos, bem ao gosto do Vargas Llosa de "Tia Júlia e o Escrevinhador".
Um menino loiro, descendente longínquo de franceses, nasce no bairro de Lins de Vasconcelos, no Rio de Janeiro. Não tem o indicador da mão direita. O menino é levado por duas ciganas, que em seu lugar põem no berço um outro bebê. Este cresce. Vem a saber de sua origem cigana. Resolve procurar o seu duplo, o seu "outro", o seu verdadeiro eu. Busca pelo mundo todo o tal cigano loiro, sem o indicador; não sabe que, logo adiante, será também objeto de uma busca; até que...
Heranças, um duplo ou triplo assassinato, escândalo, pacto de morte, justiça cigana e justiça comum: os capítulos se sucedem. Obedecem a uma intriga planejada; ao mesmo tempo, parecem ser inventados ao correr da pena, conforme o capricho, as extravagâncias e as obsessões do autor.
É nesse ponto que "O Indigitado" se mostra bem mais sombrio e pessoal do que faz crer à primeira vista. O sobrenome Cony é de origem francesa; o autor passou a infância em Lins de Vasconcelos. Na história rocambolesca do bebê trocado, há algo de obliquamente confessional; o "indigitado" é o próprio Cony.
Um homicídio foi cometido, não pelo protagonista, mas de algum modo o incrimina. É como se a culpa do narrador --a de Cony, a de qualquer pessoa-- estivesse no fato de não ter cometido o crime que deveria cometer. Há um "outro", um "duplo", a levar a vida que deveria ser a nossa.
Imagino que, para Cony, o pecado original está no simples fato de ter nascido; pior que isso, nossa inocência está no fato de que a vida que vivemos não é de fato a nossa; se somos inocentes, é na impostura. Assim como o dedo que falta, a ausência de culpa é o nosso defeito. Há abismos espanhóis, catolicismos soturnos, confissões esquisitas neste livro.
E há pelo menos uma velha obsessão de Cony: o caso famoso, que agitou a imprensa brasileira nos anos 50, do assassinato de Dana de Teffé. As suspeitas do assassinato recaíram na figura do advogado de Dana. Mas nunca acharam o cadáver, e sem cadáver não há crime. O advogado herdou a fortuna da vítima; não houve como acusá-lo de assassinato.
Esse advogado se chamava Leopoldo Heitor. Talvez seja pela coincidência do prenome que Carlos Heitor Cony encontre, nesse crime, um tema para seus pesadelos; algo como uma sombra, um duplo, está a persegui-lo. Sob a aparência de entretenimento, "O Indigitado" se entrega a esses fantasmas.
O Indigitado
Ótimo
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 22,90 (180 págs.)
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