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30. Quase Memória

O balanço de Cony

(publicado em 02/02/2002)

CASSIANO ELEK MACHADO
enviado especial ao Rio

O gatilho mais rápido da literatura brasileira está ensaiando mais um tiro de misericórdia em sua própria obra. Aos 75 anos, Carlos Heitor Cony vem esculpindo o projétil com o qual pretende varar sua ficção.

Autor de 14 romances, de mais de 20 livros de contos, literatura infanto-juvenil e biografias e de uma quantidade de crônicas cujas letras encheriam a lagoa Rodrigo de Freitas, morada e namorada (para quem fez um livro), ele trabalha no romance "Missa para o Papa Marcello".

No livro, o escritor e jornalista (colunista da Folha), que pensou em ser padre nos anos em que viveu num seminário, reconcilia-se com a idéia de que "há algo entre o ser e o não-ser". A revelação está no 12º número dos "Cadernos de Literatura Brasileira", do Instituto Moreira Salles, que chega às livrarias na segunda-feira.

"É o trabalho mais completo feito sobre mim", diz Cony, em seu escritório, no Rio. Ali no oitavo andar do edifício São Luís, o escritor interrompeu o cotidiano de crônicas, romances, comentários em uma rádio e até pintura de telas abstratas para colocar na balança o balanço que fizeram dele.

Cony foi aberto. Elogiou o romance com o qual fez sua primeira despedida da ficção, "Pilatos" (1974). Criticou "Quase Memória" (1995), com o qual voltou à ficção depois de mais de 20 anos. Falou até da reabertura de sua conta bancária com o universo espiritual. Leia, a seguir, alguns extratos do balanço do escritor.

Folha - Como você já lembrou em um texto, o poeta americano Ezra Pound escreveu que a vida é opaca e que dela ficam apenas cinco ou seis pontos luminosos. Quais foram seus momentos de brilho até aqui?

Carlos Heitor Cony - Pound dizia que a arte era o ponto luminoso. Você pega Homero, a "Odisséia" e a "Ilíada", é uma xaropada. Você pega a Bíblia, é uma xaropada. Mas, de repente, eles têm pontos luminosos.
Da minha obra o "punto" seria o "Pilatos", o livro que eu queria fazer. Os outros todos foram um aprendizado. Não tenho vergonha de dizer que muito da minha obra é um enchimento de linguiça, embora respeite o enchimento de linguiça.

Folha - Você só vê luz em "Pilatos"?

Cony - Alguma coisa em "O Ventre" e em "Pessach: A Travessia" também brilha.

Folha - "Pessach" é sua obra mais autobiográfica?

Cony - A primeira parte é. A segunda nem tanto. "Quase Memória" também tem um dado de autobiografia. Mas é um livro que qualquer um escreveria. "Pilatos", não. Como saiu, só eu poderia ter feito. É resultado de uma porção de quebração de cara. Fiz e parei. Se tivesse morrido, teria sido meu último livro. Thomas Mann diz que deveria ter morrido após "Dr. Fausto". Dizia que viveu mais que sua obra.

Folha - Você acha que a retomada da ficção, com "Quase Memória" é uma espécie de "hora extra"?

Cony - Até certo ponto sim. É uma obra depois do expediente. Embora esteja, em simetria, fazendo romances como os que eu escrevia antes de "Pilatos".
Eu tenho uma cenoura como aquelas que colocam amarrada na frente do burro e que ele nunca consegue pegar. Assim como antes eu tinha "Pilatos" para fazer, quando voltei à ficção passei a ter o objetivo de escrever um livro chamado "Missa para o Papa Marcello". É esse livro que quero fazer. E estou fazendo. Será meu último romance, assim como o foi "Pilatos".

Folha - Quanto já está feito?

Cony - Mais de cem páginas. Não sei o quanto vou aproveitar delas. Não sei quando ficará pronto.

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