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30. Quase Memória

"A essência antecede a consciência"

(publicado em 02/02/2002)

CASSIANO ELEK MACHADO
enviado ao Rio

Leia a seguir a continuação da entrevista com Carlos Heitor Cony.

Folha - Qual será o núcleo da "Missa"?

Cony- O nome do livro eu tomei de uma peça musical de mesmo nome do romano [Giovani Pierluigi] Palestrina (1525-94), pai da música moderna, criador da terceira dimensão musical. Só havia harmonia e melodia, quem criou o contraponto, a polifonia, foi ele, em várias composições, inclusive na mais famosa, "Missa Papae Marcelli" (1561), feita para um papa que ficou 20 dias no papado.

Folha - E qual será a terceira dimensão de sua literatura?

Cony- Não é à literatura, eu pretendo dar uma terceira dimensão é ao meu problema maior, de ordem não mística, mas ontológica, sobre se há ou não uma terceira alternativa entre o ser e o não ser.

Folha - No "Cadernos de Literatura", você diz que quando alguém nasce, tem uma espécie de conta bancária com Deus e que você a utilizou até perceber que estava sem fundos. O sr. fala ainda que de uns tempos para cá sente que alguém depositou "dinheiro" nela. Como anda seu "saldo"?

Cony- Quando nascemos não temos consciência. A essência antecede a consciência. Quando você descobre que é alguém já está sendo alguém. Eu me descobri às tantas já inserido em um contexto católico. Quando percebi, era de uma família burguesa, carioca, classe média. Tinha rótulos grudados em mim, inclusive católico apostólico romano. Convivi bem com isso. E comecei a gastar Deus. Gastei tanto que um dia vi que não tinha mais crédito. Percebi isso ao sair do seminário.

Folha - E foi aí que você começou a pensar em fazer a "Missa"?

Cony- Foi ainda no tempo do seminário. Eu era adolescente quando aprendi sobre a "Missa". Fiquei impressionado. Entre Deus e o nada, entre o céu e o inferno, entre o não e o sim, a morte e a vida, teria de haver uma terceira via. Quando comecei a escrever ficção, pensei nisso como tema. Mas não fiz. Quando voltei aos romances decidi que faria.

Folha - Como você, que faz crônicas diárias para a Folha em até dez minutos e que já fez romances em nove dias, enfrenta sua dificuldade em escrever esse romance?

Cony- Não tenho dificuldade formal de escrever, nunca tive. Tenho é dificuldades existenciais. Eu posso escrever mil livros. Se você me pedir um ambientado nas guerras púnicas, eu faço.

Folha - Na entrevista do "Cadernos" você dá a entender que há uma relação entre a felicidade e a capacidade literária, sendo suas melhores obras as de momentos mais infelizes e os 23 anos sem ficção os mais alegres. O retorno aos romances, desde "Quase Memória", é fruto de infelicidade?

Cony- Você acha que alguém feliz faria a Nona Sinfonia (de Beethoven)? Um homem feliz faria as pinturas de Goya? Ele tinha um lado de pintor da corte e um lado dele. Como pintor cortesão, fazia o que lhe pediam. Como eu, quando escrevia na "Manchete" sobre Roberto Carlos, Xuxa, Rachel Welsh. Não era eu. Eu sou uma pessoa mais tenebrosa, sombria, mais "Pilatos". Não que eu seja infeliz. É que houve um período em que juntou uma porção de detalhes, dos meus 40 aos 60 e poucos, quando estava muito bem. Tinha tudo, havia feito o livro que queria. Depois, uma série de fatores me fizeram me descobrir desamparado. Mas tive mais momentos bons que ruins.

Folha - E o que falta para fazer a "Missa"? Infelicidade?

Cony- Esse tempo do qual falei não volta. Estive na Grécia às tantas e visitei a ágora. Pensei que ali haviam estado Platão, Aristóteles, são Paulo. Estava sozinho. Pensei: o que é que vou dizer aqui. E dei um grito: "Vão todos para a puta que o pariu!". Eu incluído.

Folha - No discurso de posse na Academia Brasileira de Letras você se definiu, citando Eça de Queiroz, como um "anarquista humilde, triste e inofensivo". Você também se diz cético, não?

Cony- Sou. Já nasci cético.

Folha - Então por que você faz, na entrevista dada ao "Cadernos de Literatura Brasileira", uma quase apologia da esperança?

Cony- É, de fato digo que o grande problema do homem é a esperança e que o drama do inferno não é o fogo, é a falta de esperança. Mas não sou esperançoso.

Folha - O "anarquista", "cético" e "desesperançoso" Cony ficou contente em ser homenageado com o "Cadernos de Literatura Brasileira"? O que significou para você?

Cony- A longo prazo, se tudo vai acabar, não é nada. A pequeno prazo, mostra um instante. É o trabalho mais completo sobre mim. Mas me pergunto o que será disso no futuro. Haverá alguém que saiba quem foi Carlos Heitor Cony daqui a 50 anos?

Por ora, para o meu ego, minha satisfação, é um "ponto luminoso". Fiquei muito vaidoso. Sobretudo um dos ensaios, feito pela professora Raquel Illescas Bueno, comparando "Dom Casmurro" e meu romance "O Ventre". Quando o escrevi não gostava de Machado de Assis. Essa professora mostra que meu livro era todo "Dom Casmurro", e eu achava que era sartriano. Hoje não. Uso Machado conscientemente, não tenho vergonha de dizer.

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