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30. Quase Memória
Cony desenrola processo de dissolução de uma família
(publicado em 10/05/2003)
MARCELO PEN crítico da Folha
HÁ UM recurso estilístico, nesse novo romance de Carlos Heitor Cony, com o qual somos confrontados a cada página: a repetição. O autor, colunista da Folha, rediz trechos, informações e até capítulos inteiros. Explica ele, talvez como advertência, na abertura: "Repeti cenas e situações para que eu próprio acreditasse na perdoável miséria dos personagens".
Encontramos de fato bastante miséria humana, ainda que em tom menor, nesse relato sobre a trajetória de uma família carioca, os Machado Alves.
O patriarca, nascido em paupérrima aldeia do norte de Portugal, chega ao Brasil no final do século 19. Transporta muita mala alheia na estação da Central antes de comprar o elegante Hotel de França, na Praça 15.
Embora se torne milionário, expulsa os filhos quando eles completam 15 anos, para que possam fazer fortuna com as próprias mãos. Só um se dá bem, de forma torta: Álvaro. De encerador em casa de desembargador passa a escrivão de vara cível servindo de testa-de-ferro para patrão corrupto, promovido a presidente de tribunal.
É do núcleo da família de Álvaro que deriva a maior parte das intrigas do romance. O escrivão tem duas filhas. Ex-miss do Tijuca Tênis Clube, Dalva é casada com Henrique, um advogado sem emprego que vive de favor no casarão dos Machado Alves, em Ipanema. A colegial Vera mantém os laços da família com a zona norte, indo de motorista para a escola tradicional na Tijuca.
À noite, a família se reúne em torno da roleta e do pano verde esticado na copa. Ao lado, observa-os o lustre de cristal, resgatado da massa falida do Cassino da Urca. Bem pouco desse esplendor kitsch e bem poucas dessas pessoas sobreviverão até o final do romance.
Voltemos ao mecanismo da repetição, que nos lembra algo mais próximo da poesia, a rima. Sabemos que, antes da literatura escrita, a repetição de sons, além de estrofes e de motivos, ajudava os aedos a memorizar versos como os de Homero. Há, portanto, uma consonância entre esse recurso mnemônico e um romance que procura resgatar a memória de uma família.
No início, Henrique recebe anonimamente, via internet, uma antiga foto tirada nos idos de 1960. Estão todos lá, menos Vera, que possivelmente seria a fotógrafa. Em seu lugar, estende-se uma rede (de dormir).
É a partir do recebimento desta foto antiga que o fio da história dos Machado Alves é puxado, quase de uma vez, até as raízes portuguesas.
Do método mecânico de reprodução de imagens --a fotografia-- passamos então à via eletrônica de copiagem e disseminação de dados-- a internet. Por meio da rede da web, a rede de relações tortuosas dos Machado Alves nos é atualizada, reiterada e enriquecida. Para Henrique, ademais, a rede tem um outro significado, pois foi lá que ele e Vera certa tarde trocaram carícias amorosas enquanto Dalva dormia no quarto ao lado.
A teia de repetições exerce assim vários papéis: repisa do caráter dúbio dos personagens, recuperação da memória, reorganização dos fragmentos narrativos (à moda musical ou poética).
Além disso, como uma fotografia esmaecida ou um tango fora de moda, lembra-nos que "tudo se perde". Do lustre decadente à rede sibarita, desenrola-se sem alarde o processo de dissolução de uma família.
A Tarde da Sua Ausência
Bom
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (168 págs.)
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